26.12.09

Daquilo que sobra quando a brasa apaga


O vento é brincalhão. Brinca com as folhas de árvores que voam até os céus e voltam ao chão novamente. Brinca com o cabelo dos passantes e dos viajantes. Brinca com as roupas nos varais, dançando ciranda e se abraçando nas roupas estendidas ao sol. Brinca com a água levando em ondas e mais ondas pensamentos e imagens refletidas nas águas e nas poças de chuva. Brincalhão assim brinca com o fogo, levanta labaredas, acende o fogo antes apagado. Na brasa encontra teimosia. Sopra, sopra, brinca de brisa, de vento forte. Mas as brasas são teimosas gostam de brincar com o vento, assim como brinca com o fogo e as pessoas. Brasas são resistentes ao acender-se e ao apagar-se.
As Brasas são apegadas ao querer delas, ao sentir delas, ao afeto delas por aquele não sabe se vai nem se vem. O vento não, o vento e decidido, sopra, brisa, venta, sacode, acalma, desacalma. E ele é assim, vem quietinho nas tardes de mormaço e faz um afago no nosso rosto, é assim que ele chega na brasa, de mansinho e a acende tornanado-a mais bela e bonita do que antes. Ele fica ali um pouquinho olhando admirando a boniteza da dança e depois vai soprar em outro lugar. E assim a brasa apaga - ou achamos que ela apaga, pois a teimosia dela persiste depois que o vento vai, ela fica lá quietinha até ele voltar e o sopro acontecer novamente.

Elisandro Rodrigues

P.S: Que nesse ano que se aproxima sejamos uma mistura da teimosia de Vento e Brasa.

23.12.09

Daquilo que não sei

Ando por aí olhando lugares e ambientes como quem anda tentando afogar a saudade numa imagem. Molho os pés nas águas salgadas da saudade a procura de uma brisa e do vento. Quem sabe o vôo seja permitido quando a leveza do corpo se tornar possível. Na teimosia que me permite os sonhos navego por ventos, por mares, por árvores, arco-íris e botões.
Nas sendas que me levam para aqui e acolá nada é certo. Apenas a fuga do que sufoca e do que nos desconstrói. Trilhar caminhos incertos de pedras que afundam com o pisar, da grama molhada com o choro da manhã, das nuvens macias onde cada pisar é um cair para outra nuvem.
Na arquitetura das surpresas um acordar-se para dentro no sonhar nas asas da procura embalados com o vento na noite acordo com sonhos intranqüilos. Nos fragmentos das noite sonho que sou outra pessoa, que vivo dentro de outra pessoa, vivendo uma vida que não é a minha. Acordo. Suado. Me toco. Me belisco. E percebo que eu nunca fui eu.

Elisandro Rodrigues

27.11.09

Tingimento de folhas



O menino tentou mandar beijos e abraços pelo vento. O vento não retornou. Ficou ressentido o menino e sem sentido. Começou a caminhar pela grama verde que cobria o redor de sua árvore. De uma flor brincou de mal me quer bem me quer. Parece que o gozo emudeceu, não de prazer, mas de tristeza. Sem saber o que fazer o menino pensou em fazer algo para se desculpar com a menina dos botões coloridos. Queria movimentar as co[do]res da paixão novamente. Sonhos são como Deuses se deixarmos de acreditar neles eles deixam de existir, pensou o menino.

No meio dos sonhos, das cores, dos livros, dos mosaicos tingidos ele procurou por algo. Achou um pedaço de papel, tintas e linha. Tudo o que precisava. Desceu de sua árvore e se pôs a criar. Correu primeiro pelos campos buscando flores de diferentes cores e duas varinhas que iria precisar. Sentou-se e aquietou a alma. Aquietou a alma e pensou no gosto do gosto da menina. No gosto depois do beijo. No gosto depois do amor. No gosto do toque e do correr pelas ruas e campos com ela. O gosto tomou forma, a forma tomou cor. A cor movimento de cores na des-canção do corpo cancional do menino. (Quanto mais eu espaçava espaço dentro do tempo mais forte o tempo empurrava aquele meu corpo adentro)

Menino terminou sua brincadeira, brincadeira de cores, brincadeira de desculpas sinceras de uma desrazão tola. Desafinou novamente seu ouvido, sua fala, seu corpo. Se abrigou nos olhos curiosos das crianças. Correu pelos campos flutuando ao sabor das palavras sentindo o perfume de capim e das flores acima de sua cabeça tomando altura. Num delírio de seu corpo desejante abriu asas ao horizonte. E na manhã fez canções de tarde e noite buscando sinais de pré[au]sem[ncia]ça na caligrafia do vento encontrou uma brisa. Na brisa um toque suave que lembrou momentos passados e futuros. Se jogou no mar do tempo e do vento com sendo devorado pelo afeto.

Pingos de chuva começaram a cair. Atrás da chuva o beijo. Uma arquitetura de surpresas numa sopa inundada de vida num fragmento de noite de um outro tempo.

O menino correu. Da corrida a pandorga saio do chão. As assas do menino subiram aos céus em forma de arcoiris de desejos e flores. Num céu cinza do tempo de outro dia se borra com tintas e flores e colori riscando os céus. O menino corre pelos campos, pelos cantos do mundo querendo entregar o presente a menina dos botões. Corre sem descansar, corre sem dormir, corre em silêncio num desejo mudo para não significar nada e dar sentido a tudo. Mas o menino não encontra a menina. As flores começam a florescer e dar outras flores na pandorga presente dela. Uma vida borboletiando numa pandorga. Mas o menino segue na esperança do seu arcoiris port[virb]átil.

Sem saber de suas andanças a menina desenha arcoiris, prega botões, constrói tingimentos em pedaços velhos de roupas e folhas das árvores na espera do menino em sua árvore.


Elisandro Rodrigues


Ter (Mauro Luis Iasi)

Queria tê-la

Detê-la

Rête-la

Na tela pintá-la.

Queria tê-la

Para dizer

Tenho

Não como guardada

Em baús ou malas.

Não em pequenas peças

De memória ou saudade.

Queria tê-la

Como ao ar

Que passa livre como o vento

Que meu corpo quer guardar.

Tê-la assim para depois perdê-la.

Tão grande, tê-la aos poucos

Devagar e insaciável.

Tê-la nos olhos

Como uma ave

Que segue seu vôo no céu

E na retina.

Tê-la como a praia

Tem ao mar

Como língua que volta a boca

Depois de beijar.

Queria tê-la

Pra dizer que tenho

Por nada ter para guardar

A não ser a sensação

Pregada na pele

Que você deixa

Depois de amar.

13.11.09

Úmidos de imaginação






“Ou o tempo é invenção ou é nada...” (Bérgson)

Iniciei esse texto escrevendo dentro do ônibus, aproveitando à longa jornada no caos que é o trânsito de São Paulo. Termino-o agora à noite.

Ao voltar e reler o texto, e começar a modificá-lo me lembrei das palavras de Bérgson sobre a inventividade que devemos ter. [Des](Re)Construir o tempo foi o que os atores, diretor e equipe que construíram a peça “O capitão e a Sereia”, a Trupe Clowns de Shakespeare, inspirado na obra de André Neves;

Ao sair da peça iniciei a escrever e a pensar e logo me lembrei da mensagem de André Neves dizendo que “ficou guardado muita felicidade e quando fecho os olhos parece que estou assistindo”. Levei no meu corpo e nas minhas memórias as imagens de um espetáculo que vez olhar mais, de escutar com outros olhos.

É difícil traduzir com palavras o que foi vivenciada no espetáculo “O Capitão e a Sereia” uma proposta desafiadora eu diria. Desafiador, encantador e que joga o público para dentro do espetáculo, para dentro da história. Durante o espetáculo muitas coisas me chamaram a atenção, desde o momento inicial até o final. A afetividade, a relação da trupe com o público antes do espetáculo, no espetáculo e depois dele.

Me senti acolhido por todos e todas. Na ida para o teatro lia Neil Gaiman que dizia que "histórias são, de um modo ou de outro, espelhos. Nós a usamos para explicar como funciona ou não o mundo ..." com certeza a proposta da trupe de romper fronteiras do teatro, da estética, trazendo para junto do palco um pouco da realidade, das angústia, dos medos, dos sonhos, da vida num mundo cheio de cartografias e de ondas que nos carregam para mar adentro.

A idéia cons(des)truída e as várias narrativas dentro do espetáculo instigavam ao público uma reflexão, instigavam a se jogar dentro do mar, ficar “úmido” de história e a se perder junto com o Capitão Marinho.

No livro de André Neves Marinho é um contador de histórias, mas na peça, ele não se faz presente na narrativa se faz essência e presença nos atores e no público. Contadores de histórias esplendidos os atores nos conduziram por caminhos secos e molhados. Suas falas traziam poesias, encantos, cantos de sereias que entram em nossos ouvidos e corações. São músicas "bonitinhas" (como diziam os atores) que nos remetem a imaginários e fantasias.

A peça é uma história contada com vida, com imagens e com realidade (não entro no mérito de falar do figurino, da cenografia, da iluminação, das músicas não sou qualificado para isso mas todos os elementos se compõe como a água salgada do mar). Tudo é feito com vida. Tudo é feito com paixão e nos faz mergulhar de olhos fechados na tecetura de uma mar “úmido” de um teatro vivo e que vive dentro de nós.

Silenciar com a música e fechar os olhos na escuridão pensando nos mares existentes em nós. Os adultos deveriam assistir a essa peça é deixarem se cativar por histórias contadas com o corpo e os sentimentos. Precisamos mais desse resgate, precisamos jogar o anzol e trazer das profundezas do mar alguns sentimentos afundados, trazer a coragem de ousar de construir e de contar histórias com palavras, imagens, sons e com o corpo.

Sai da peça com a certeza de que é urgente semearmos e plantarmos a imaginação. Fiquei muito feliz ao ser presenteado no final do espetáculo a observar os desenhos originais do livro do André Neves (fotos ilustrando esse texto).

Agradeço a Trupe Tropega, Mas não Escorrega, ao André Neves, aos atores do Clowns de Shakespeare (Camille, César, Marco e Renata) a experiência que me proporcionaram nessa tarde quente de sexta feira longe de casa assim como o Marinho ficou por tanto tempo. Tempo para reinvenção, para criação, para imaginação.

Elisandro Rodrigues

3.11.09

Ventania de cores.



“A maior dor do vento é não ser Colorido” (Mario Quintana)

O vento traçava seu movim[inv]ento no ar do quarto. Fazia calor e os corpos sua[ma]vam.

Dois corpos em colo[do]res. O movim[v]ento das cores. Vento se fazendo cor. Se fazendo odor. Criando uma dança de des-canção nos corpos cancionais – [instâncias de insubstâncias].

Cantiga de [in]vento. Nas funduras do go[lambu]zo[u] os prazeres se fazem presentidade. O abraço de uma semana se demora no corpo sua[ama]do. O gemido do prazer se prolonga ainda no assopro do [em]canto.

Devo[o]rando os corpos seguem sem palavras.

Ausência sem presença de palavras. Cores por todos os lados.

Passarando feito pássaro passam os dias se empurrando [cor]po adentro.

Palavras que falam através dos corpos – do tato, do beijo, do abraço, da penetração, do gozo.

O vento traça movimentos dentro do quarto.

Dentro do quarto dois corpos se movem com o vento.

No vento o sussurro do prazer.

Prazer de idas e vindas nas colores.

Ventania de cores.


Elisandro Rodrigues

17.10.09

Ame Ela




“Há um nome Levado no Vento. Palavra. Pequeno rumor entre a eternidade e [o momento.” (Cecília Meireles)
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Es[voa]çando no tempo vai o seu nome. No tempo de minha memória vibrátil. Assim pensava o menino dos botões ao lembrar dos catagiros da menina. Menina que com um corpo de liberdade e de res[ins]piração – “só enquanto eu respirar..” – levou o menino ao gozo muitas vezes. Corpo onde o tato fez caminho, onda a língua lambu[Go]zou de prazer. Dança dos corpos no vento do amor. Nas funduras e alturas da alma o gosto de chocolate go[la]tejando num [re]puxo de brincar abrindo-se ao êxtase e ao sentir a beleza escondida nos pequenos gestos da pele ao capturar fotogramas musicais das gotas de suor.
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Na escuta da reza a saudade e a vontade de ver-te a prese[ausência]nça-au[presença]sência de habitar no corpo desejante da menina do catagozos.
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Cantigas de roda o vento me traz. Mosaico de sons e de palavras que se formam na tempestade que aduba os jardins. A alegria de florir na saliva da menina. A alegria de abrir-se nas pernas da menina. A alegria de partilhar nos fluidos corporais poemas sem palavras sem sons sem vozes poemas de silên[ausênciapresença]cio.
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No bolso da alma e do corpo botões. No bolso da calça uma bicicleta que leva ao vento recados e palavras sem[com]sentido através dos botões do [in]vento. Voam[am] as raízes da árvore do menino. Entrela[bra]çam-se nas asas de um sonho de estranhe[bonite]za vivido por essas crianças.


Elisandro Rodrigues

6.10.09

Dar língua para afetos que pedem passagem.


“Na falta de luz pegue uma vela, lápis, papel e percorre-os”. Foi o que ela disse e foi o que ele fez. A noite havia se pronunciado há tempos, assim como a chuva trazida pelos ventos. Dentro de casa, na penumbra das velas, ele havia permanecido deitado, escutando os sons da chuva e do vento esperando a luz voltar. Mas ela não voltaria tão cedo.

O sono não vinha, ainda era cedo o relógio do celular marcava 19 horas, sem luz o que fazer? Vagueou pelos cômodos da casa silenciosa a procura de algo que o entretece. A bateria do notebook durou apenas uma hora, deixando o filme que assistia pela metade (Os amantes do circulo polar). A bateria do celular estava no fim, ele apenas ligava de tempos em tempos para ver a hora. Caminhou até a porta, abriu-a e deixou o ar da noite chuvosa entrar. Ficou um tempo a observar as formigas que subiam pelo cabo da televisão e da internet.

Nesse momento de distração o sopro dela entrou. Percorre-os. Percorrer a vela, o lápis e o papel. Assim ele ficou: com uma vela acessa a sua frente, um lápis em sua mão e seu pequeno caderno sob a mesa. Não sabia como percorrer. Se ela tivesse dito como fazê-lo.

Meditou sobre a vela, sobre a luz que ilumina e viaja tão rápido, mais rápido que o vento. Lembrou-se de sua infância, das muitas velas que iluminaram a casa onde passará sua adolescência – uma cidade do interior onde a luz elétrica não havia chegado. Deixou a memória aberta as imagens: músicas, filmes, sensações, o rosto dela iluminado por uma vela. Fazia pouco tempo que tinha visto aquela imagem: ela e a vela. Fazia pouco tempo que o lápis percorria páginas e páginas falando sobre a paixão intempestiva de um menino do catagiro e a menina do botão. Para a luz e para o vento isso era apenas milésimos de segundo, mas para ele era muito tempo.

Na mente mil e uma idéias para filmes, documentários, músicas, livros, mas o papel em sua frente continuava branco como a neve. O papel aceita tudo o que se escreve nele, como o corpo aceita o toque com desejos de paixão. Pensando no corpo dela percorreu a folha com o lápis, assim como suas mãos percorreram o corpo dela.

Toque. Rápido. Lento. Carinhoso. Desejoso. Amoroso. Com tesão. Com surpresa. Descobrindo e mapeando. Tecendo e cosendo novidades. A pela macia das coxas. As mãos que acariciavam o corpo como um jardineiro acaricia a terra preparando o jardim de flores amarelas e laranjas. Um jardim de prazer.

Umbigo. Seios. Bunda. Braços. Cabelos. Rosto. Cada toque repassado vagarosamente na folha, construindo uma gramática corporal, uma linguagem entre mãos e corpo, a cartografia corporal deles. Toque. Lábios. Sabor que encanta e canta. Que vicia. A língua que percorre o corpo como as mãos, sentindo o gosto doce do desejo. Se detêm aqui e acolá – nos seios fonte de ternura, amor e paixão – nas mãos que acariciam o corpo alheio. A língua, as mãos traçam caminhos corporais, como o lápis cria linhas por onde passa.

Corpo território sagrado. Papel palavra que se encarna no corpo – corpo encarnado de poesia, de amores, de utopia, emanações do corpo vibrátil, de bonitezas de um jardim colorido, do devir de um novo amanhecer. Amanhecer na cartografia corporal, nos beijos e suspiros de paixão – os olhos cansados que não se fecham - a vela em sua frente dança construindo figuras no papel agora rabiscado e colorido.

A vela chega ao final lentamente e o papel – jardim colorido dos desejos – tessitura/tecitura única: paixão e toque – sabor e vento – flores e suor – beijos e palavras- suspiros e abraços. O papel antes branco agora vive com memórias do menino dos botões e da menina do cataventos.

O lápis adormece ao lado da folha reinventada moldados pela luz fraca da vela que se apaga lentamente dando seus últimos beijos no colorido do jardim dos amantes, dando passagem aos afetos.

P.S: Depois de devorar – ou ter sido devorado, por estas palavras chega em minhas mãos e ao meu corpo um livro – há tempos esquecido na prateleira e ainda não lido completamente – da Suely Rolnik “Cartografia Sentimental”, ao ler me deparo com o conceito de Cartógrafo Antropófago, onde o mesmo da língua para afetos que pedem passagem.

“Como toda cartografia, ela foi se fazendo ao mesmo tempo que certos afetos foram sendo revisitados (ou visitados pela primeira vez) e que um território foi se compondo para eles...” (Do livro)

Elisandro Rodrigues

5.10.09

Me vestindo com cores e músicas

(Imagem de Andre Neves - http://confabulandoimagens.blogspot.com)

Olho para fora pela janela de minha alma. Vejo os jardins e as árvores floridas. Melodias e vozes saem dos botões de flor ao se abrirem. O mundo é uma melodia harmônica. O vento tece teias ligando notas e arranjos num ser intempestivo. A maioria das notas se perdem aos ouvidos humanos, o ar é poluído por sons de carros, de gente falando, de músicas e sons produzidos por batidas e pisares. O som do mundo, da natureza se junta ao som produzido pelos homens e mulheres no seu dia a dia. É preciso escutar com outros olhos, abrir os ouvidos aos sons e o corpo a música.

No pulsar do coração o menino escuta o que se passa lá fora, pela janela entram os sons do cotidiano: um cachorro latindo, passarinhos cantando, uma dona de casa lavando a casa, um carro passando, uma ambulância, o vento nas árvores, as abelhas zunindo, as flores caindo, os passo no chão. Tudo é música ao ouvido. O menino escuta longe. Escuta o mar, escuta a areia, escuta a chuva molhando a terra e as flores se abrindo. Mais longe ainda escuta o coração da menina.

O menino escuta isso por que tem um botão na orelha, e do lado o catavento a girar trás os sons propagados pelo vento. No jardim do menino nenhum som se perde, as melodias e as vozes são captadas pelos quatro buracos do botão, juntas se transformam na música deles – do botão e do catavento, colorindo assim as imagens e os movimentos antes cinzas de um mundo que não ouve com os olhos.

O vento leva as bolhas de sabão abrindo as flores ao passar e regando as sementes no chão. No intempestivo que vem um devir de boniteza se espalha pelo mundo fazendo sorrir um menino com um botão e uma menina com um catavento.

Elisandro Rodrigues

24.9.09

Catador de Botões



“Os nossos corpos são finas camadas de carne que recobrem um poema. Somos poemas encarnados.” (Rubem Alves)


O menino sentado em cima da árvore observa o tempo sendo soprado pelos ventos girando seu catavento. Observa o tempo passar sem fixar-se muito em nada. Sente-se só com seu catavento e suas palavras encarnadas. Sem perceber uma menina passa por perto dele. A menina vem cantando e sorrindo, como se a música fosse seu corpo sendo soprado pelo vento, cri(ando) e rein(venta)ndo formas, cores, aromas e sabores. Vem caminhando com seus botões – nas orelhas, nas roupas, no cabelo, nos tênis, na sua sacola interligada com fios.


O vento traz ao menino o sopro de um a(braço) quente e aconchegante. Ele olha em volta tentando descobrir de onde vem aquele calor gostoso que o envolve. Seus olhos são acolhidos carinhosamente por um afago dos olhos da menina. O olhar o envolve e o desnuda mostrando seus sonhos e suas utopias. A menina dos botões apenas sorri para ele e sai no seu in(vento) de novos sopros e na teimosia de novos vôos. O menino pisca e seus olhos se enchem da boniteza da vida.


O menino permanece sentado em cima da árvore sem reação depois do olhar que o desvelou e mostrou a ele novos sonhos possíveis. Sem saber o que fazia desceu da árvore e começou a caminhar atrás dos botões deixados pela menina. Achava os botões aqui e ali ficavam caídos - perdidos no meio da grama, mas não enxergava a menina que os largava. Assim de botão em botão ele continuo a caminhar.


Quando se quer achar algo não se acha, é assim que funciona com os botões quando queremos os pregar em nossas roupas. Sempre está faltando um em nossas camisas, blusas, calças. Quando queremos encontrar não encontramos. Foi assim que se seguiu com o menino do catavento e das palavras encarnadas. À medida que achava os botões e procurava a menina que os largava o tempo ia passando. À medida que caminhava mais botões ele achava. Depois de certo tempo decidiu que iria distribuir esses botões, dar a outras pessoas que haviam perdido, ou faltava um botão, ou para enfeitar os cabelos, as orelhas, as roupas, criando penduricalhos com botões, roupas, sacolas, reinventando novas formas de utilizá-los. Mas a menina dos botões não tornou a ver.


O menino se tornou um catador de botões, e um distribuidor de botões perdidos. Deu-se conta em seu caminhar que muitas coisas se perdem quando os olhos piscam. Deve ter acontecido isso com a menina dos botões, seus olhos piscaram depois de à ver, e ela desapareceu no nada. Muitas coisas ele achava e distribuía além dos botões: livros, palavras, abraços, cheiros, flores, sorrisos, beijos, poesias, guarda-chuvas, ...


Quando cansada de caminhar, permanecia por um certo tempo em cima das árvores, pensando que assim ela apareceria sem o ver. Mas as coisas não acontecem assim. Nos dias que passavam cheios de coisas perdidas ele encontrou um poema, o pedaço de uma música cantada que o vento soprou:


“São Longuinho, São Longuinho
Me fale me dê um sinal!
São Longuinho, São Longuinho
Pra onde foi?”


Aos poucos a música se tornou um mantra, e os mantras são coisas bonitas que se perdem na voz e nos sentimentos, assim como o corpo se transforma em palavra e em poema encarnado. São Longuinho deve ter atendido o seu pedido, depois de tanto cantar num dia onde as nuvens estava cinzas e o corpo necessitava de um abraço ele sentiu o perfume dela novamente. Mas como muitas vezes havia acontecido achou apenas que fosse sua imaginação. Sentado em cima de uma árvore ele permaneceu. Quando ela o chama:


“Ei! Ei você ai em cima! Se por acaso tem um verso perdido, ou quem sabe pendente para preencher as estrofes da degustação de novos instantes?”


Os olhos do menino piscaram, quem sabe fosse imaginação. Mas não, quem perguntava era a menina dos botões. Radiante em beleza e poesia com os botões pendurados no corpo, era ela sem dúvida. “Ei menino. Ando a procura de uns versos perdidos, me contaram que por esses lados andava alguém que catava coisas perdidas, pelo jeito é você né?”


A menina olhava para ele com ternura desvelando nela mesma sonhos possíveis e utopias reais. O menino se olhou e percebeu o quão estranho estava, não desnudo como da outra vez, mas cheio de coisas presas em suas roupas: botões, livros, poemas, pedaços de papéis, flores, garrafas, fitas, ... e seu catavento. “Que verso você procura?” disse ele descendo da árvore.


“Perdi um verso quando encontrei um menino certa vez, na verdade compartilhei com ele no olhar, mas não o encontro, nem o verso nem o menino. O verso era mais ou menos assim ‘é muito gostoso esse nosso aconchego ...’ e não me lembro o resto.”


O menino a olhou dentro do olho dentro e repetiu “é muito gostoso, esse nosso aconchego, esse nosso chamego, essa nossa alegria de ser feliz...” e caminhando em direção a menina dos botões a abraçou com o sopro e o vento de muitas caminhadas e muitos dias.


Elisandro Rodrigues



11.9.09

“te extraño”




Os dois estavam sentados na beira do mar. O vento estava forte, mas as águas estavam calmas. O frio fazia os corpos dos dois chegarem mais perto os envolvendo em um único e duradouro abraço. Após um longo tempo de silêncio onde os sons do mar e do vento compunham uma suave e harmônica melodia com o silêncio ela disse – “Permítanme sacar una foto de usted con la ciudad”. Ele olhou para ela e sorriu acenando a cabeça positivamente. Ele se levantou e caminhou até a beirada do trapiche de concreto. Ela tirou a foto registrando o momento em que o vento, as ondas e o silêncio enchiam os corações de ambos. Ele voltou caminhando para junto dela e sussurrou lentamente no ouvido dela – “Me lembrei de uma frase que diz o seguinte ‘Os nossos corpos são finas camadas de carne que recobrem um poema. Somos poemas encarnados’. Sentirei saudades de você!”. Ela o olhou nos olhos se aproximando mais do seu abraço e disse ao som do mar e do vento “También te extraño”. Fechando os lábios aproximou-se dos lábios dele e o beijou suavemente deixando uma lágrima escapar dos olhos.

Elisandro Rodrigues

26.8.09

"Se entregar ao caos para extrair nova existência..."




(Achei interessante compartilhar partes de um texto de uma de minhas aulas. Boa leitura, no final link para acessar o texto)

Também utilizarei um outro recurso expressivo para a brevidade da exposição: uma metáfora. A situação de encontro entre dois corpos que irei analisar deve ser a mais prosaica, universalmente experimentada e reconhecida por todos nós: a “paquera” (o flerte - flirt). Para não perder a pompa acadêmica, eu denominarei minhas análises de “teorema da paquera”.
Num primeiro instante, fulminante, temos o chamado “amor à primeira vista”. Os corpos experimentam, neste caso, um estado de paixão “passiva” (logo ficará mais claro o que isso quer dizer) e estamos sob o domínio da imagem do outro, da impressão que ele nos causa, das afecções que ele imprime em nosso corpo. No caso, uma boa, uma ótima impressão. Experimentamos, em termos espinosanos, um afeto aumentativo, um sentimento de aumento de nossas potências ou, dito de outra forma, um aumento de nosso desejo, de nosso apetite, que se nutre da convicção de que aquele outro corpo nos convém. Mas até aí, também em termos espinosanos, estamos no reino do “conhecimento vago”. É claro que os espíritos mais “apaixonados” sempre dirão estarem seguros de terem encontrado seu par perfeito, seu amor eterno, mas sabemos que tais verdades só se confirmarão a posteriori...
Do mesmo modo que Espinosa chama esse “conhecimento vago” (ou imaginativo) de conhecimento de primeiro gênero, podemos chamar as relações sustentadas por tais vínculos de uma relação de primeiro gênero.
Continuando nossa novela amorosa, é possível que, com alguma sorte, aquele encontro que despertou paixões intensamente positivas (ainda que “passivas”) se prolongue. Podemos, por exemplo, marcar um novo encontro, combinar uma saída, quem sabe um jantar a dois, de preferência uma oportunidade qualquer para conversar. Sem querer homogeneizar toda uma diversidade de estilos possíveis de paquera, creio não incorrer em graves reducionismos ao fazer algumas generalizações sobre o conteúdo mais habitual destas primeiras conversas. Os enamorados tendem, em seus primeiros encontros, a explorar o que têm em comum ou o que irei chamar de “zona de comunidade”:
- Você gosta de comida japonesa? Puxa, eu também adoro!
- Não me diga que você gosta dos filmes do Hal Hartley? Incrível! Eu nunca conheci alguém que também gostasse... Só falta você dizer que também gosta de Tarkovski... Não acredito!
- Você também não suporta televisão? Nossa, a gente tem tudo a ver...
Se alguém duvida desta fórmula da paquera, basta imaginar os efeitos de uma situação exatamente inversa, em que não descobríssemos qualquer “zona de comunidade” com aquele que, à primeira vista, despertou nosso interesse. Sairíamos do encontro provavelmente bastante frustrados ou, no mínimo, com uma enorme incerteza a respeito do futuro daquela relação. Paixões violentas não se extinguem diante desta decepção, mas já começam a prometer turbulências.
Na nossa novela, entretanto, a paixão que se acendeu ao primeiro olhar só continuou a crescer mais e mais, na medida em que descobrimos a amplidão de nossa “zona de comunidade”, na medida em que descobrimos que aquele corpo realmente nos convém. Experimentamos esta nova paixão como um aumento ainda maior de nossa alegria, um aumento de nossa potência, de nosso desejo e apetite de vida. Mas, sobretudo, ela vai deixando de ser uma paixão “passiva” e progressivamente vai se tornando uma paixão “ativa”, isto é, descobrimos, pelo conhecimento recíproco, que estamos realmente diante da possibilidade de entrarmos, conjuntamente, na posse dessa potência de vida e experimentarmos afetos de alegria consistente. Saímos deste encontro rindo à toa. Com esse riso gratuito, essa espécie de excesso ontológico que é o riso dos enamorados...
Segundo Espinosa, já adentramos o reino do “conhecimento adequado” ou do conhecimento de segundo gênero, que é o conhecimento das “noções comuns”, o conhecimento daquilo que nos outros corpos nos convém. Esse conhecimento, quando é buscado conjunta e reciprocamente numa relação, abre a possibilidade de uma relação de segundo gênero.
Nesse sentido, conquistar a confiança, por si só, já é um logro. É não apenas a experiência de uma grande alegria, mas uma potência capaz de sustentar as dificuldades maiores de uma relação. Sim, porque há outras conquistas, maiores, a se realizar numa relação...
A “zona de comunidade”, isto é, a descoberta daquilo que nos outros corpos convém ao nosso, é apenas o primeiro patamar de uma relação consistente. Naturalmente, por mais raro que tenha se tornado, este ainda é o patamar mais fácil de alcançarmos e aquele que, talvez, nos dará a força necessária para conhecer o que é mais difícil: aquilo que nos outros é diferente e corresponde a sua “zona de singularidade”. Porque é preciso uma potência ainda maior para se conhecer, nos outros corpos, aquilo que não nos convém.
Esse é, para Espinosa, o conhecimento de terceiro gênero ou conhecimento das “essências singulares”. Relação de terceiro gênero.
Voltando a nossa metáfora amorosa – já abandonando a fase da paquera e partindo para a possibilidade de uma relação duradoura -, sabemos o quanto essas paixões iniciais, mesmo que medianamente “ativas”, isto é, mesmo que já fundadas no (re)conhecimento de uma “zona de comunidade”, por mais ampla que seja, por mais fortes que sejam os afetos de confiança que daí decorrem, não são sempre suficientes para garantir que nós saberemos lidar com as diferenças, com o que no outro eventualmente não nos convém. Por isso, não raramente, quando decidimos encarar a possibilidade de fazer esta relação perdurar, fazemos um “contrato”. E sabemos que os contratos começam onde a confiança termina... Os contratos podem ser vistos como próteses sociais de uma confiança perdida ou que jamais existiu. Ora, isso não quer dizer que quando vamos a um cartório para firmar um casamento não haja mais confiança recíproca. Pelo contrário, isso geralmente acontece quando a confiança está no auge! Mas não creio que seja exagerado dizer que, na prática, só é preciso firmar este contrato porque queremos garantir que certos compromissos serão mantidos e não temos certeza que seremos capazes, até o fim, de aceitar um ao outro, em todas as suas diferenças (que certamente acabarão por se revelar, mais cedo ou mais tarde).
A partir deste ponto, em que eventualmente recorremos a um “contrato”, percebemos, de qualquer modo, que a confiança não é mais suficiente para sustentar as novas aventuras da relação. Sem ela, não teríamos chegado até aqui e ela é a própria potência, a própria força ou o trampolim que nos impulsionará mais adiante. E o que temos adiante? Não mais o que no outro se assemelha a nós. Não mais o que é facilmente reconhecível. Não mais o que no outro é, de certa forma, nossa própria imagem espelhada. Mas o que no outro é irredutível. Sua diferença absoluta. Sua singularidade radical. E é aí que começa o verdadeiro desafio da alteridade. Só aí somos verdadeiramente desafiados a aceitar o outro como um legítimo outro. Nessas novas zonas, passamos a experimentar novas intensidades, às quais fomos conduzidos pelos afetos de confiança, mas que já correspondem a novos afetos aumentativos que anunciam, por sua vez, outros modos de existência, em que nos tornamos a causa última de nossas paixões, em que entramos plenamente na posse de nossa potência. Para Espinosa, a liberdade.
E o que é esse afeto, essa paixão que nos predispõe a aceitar o outro como um legítimo outro, senão o já mencionado acolhimento?
Quando um campo de confiança se constituiu entre os sujeitos, já podemos nos mostrar para o outro com todos os traços de singularização que marcam nosso corpo e nossa alma, sem medo de sermos rotulados como loucos, fracos ou perdedores. Nota-se que há um deslizamento sutil do afeto de confiança para o afeto de acolhimento...
O momento da confiança é aquele “em que as forças de heterogeneização estão por cima, o que engendra um novo tipo de relação feito de ‘respeito, admiração e confiança’...” Esse “outro tipo de relação’’ é, na verdade, “um outro modo de subjetivação, um outro mundo neste mundo. Amparar o outro na queda: não para evitar que caia nem para que finja que a queda não existe ou tente anestesiar seus efeitos, mas sim para que possa se entregar ao caos e dele extrair uma nova existência. Amparar o outro na queda é confiar nessa potência, é desejar que ela se manifeste. Essa confiança fortalece, no outro e em si mesmo, a coragem da entrega” (Rolnik, 1995).

TEIXEIRA, Ricardo - As redes de trabalho afetivo e a contribuição e a contribuição da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. CLIQUE AQUI

21.8.09

Quando o amor se escreve nos corpos.




Ele chega em casa ela está deitada no sofá entregue ao sono. Ela está vestindo seu pijama cor de rosa com ursinhos saltitantes estampado. Ele se aproxima dela, ajoelha no chão beija sua testa e acaricia sua barriga, dentro dela a criança se mexe com o carinho. Ele beija com carinho a barriga acordando ela que o olha com ternura e paixão. “Oi amor” diz ele baixinho, “vamos deitar na cama, pegaste no sono de novo no sofá!”, “estava te esperando mor”. Ele ajuda ela se levantar devagarzinho. Por trás do pijama rosa pode-se observar a barriga de quatro meses. Ele a deita na cama lhe dá mais um beijo no nariz, na boca e na barriga. Tira a roupa. Toma um banho. E vai-se deitar do lado da mulher que a cada dia ele se apaixona mais. Apaga a luz e a abraça com paixão, ternura e carinho embalando ela e sua filha num abraço gostoso.

Elisandro Rodrigues

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

(Todas as Cartas de Amor São Ridículas – Álvaro de Campos heterônimo do poeta Fernando Pessoa)


15.8.09

Impermanência de criança...


Diz o menino para a menina:

- O meu querer é complicado de mais mas a tempestade sempre dá lugar ao sol, o vento sopra as nuvens carregadas de chuva. Assim posso voar mais alto que as nuvens e lá de cima escuto teu riso e vejo suas lágrimas molhando o travesseiro. Mas escuta menina, escuta essa poesia, escuta no pulsar do meu coração que bate por te ver aqui de cima das nuvens. Escuta menina, pois trata-se de agüentar cinco minutos e depois cinco minutos mais....


Se nem a vida dura a vida inteira
Por que o amor haveria de durar
Se sou aquilo que vejo nos teus olhos
Em teus olhos aprendi a enxergar
Naquele tempo e ainda hoje
Dentro da noite
Noite adentro amei a nossa falta mesmo de amar
Compreendendo o que duvido lembro que vivo
Vivo que amo em teus olhos aprendi a duvidar...
Se nem a vida dura a vida inteira por que o amor haveria de durar
Se sou aquilo que vejo nos teus olhos
Em teus olhos aprendi a enxergar.
Então se fez chegada a hora dos olhos teus saírem de casa
Ferido e vivido olhar
Talvez passasse em brancas nuvens o canto dos teus olhos sem véu
Muro com caco de vidro furando a barriga do céu.
Malandro é o parafuso que já nasce de cabelo repartido!

(Samba da Impermanência – Richard Serraria e Marcelo Cougo)

8.8.09

O tempo é coisa de outro mundo

“Agosto sempre chove e faz frio” pensava o velho sentado em sua cadeira de balanço. O frio do inverno se mostrava rigoroso como sempre. Cada dia que passava ficava mais difícil para aquele velho organizar o seu pensamento. Vivera uma vida com intensidade, sua memória sempre fora boa, mas nos últimos dias estava difícil lembrar. Passava o dia sentado. O colocavam na sacada pela manhã para pegar sol e a tarde no pátio junto com os outros velhos que ocupavam a casa. Havia sofrido um derrame anos atrás perdendo a capacidade de se comunicar. Quando queria alguma coisa escrevia com uma letra tremida em um pequeno bloco que carregava com ele.


Naquela tarde chuvosa e de frio ele tentava organizar o pensamento entre as poucas lembranças que vinham à tona. “E aquela menininha, como era mesmo o nome dela....com que letra começava...C, não....J....hum Gabi, isso Gabriela era o nome dela. Menininha fofa, cada vez que ia na casa dela ficava horas brincando. Que tempo bom aquele. Tempo de juventude, correria....de produção cultural. Boraimbolá o nome daquela banda. A gabi....deve ter crescido bastante. Por onde anda aquele pessoal todo????....”


As lembranças de certas pessoas o deixavam sensível. Entre uma lembrança e outra uma lágrima escorria pelo seu rosto. “Crianças...a minha priminha Dessa. Minha irmã...que falta faz a gente brincar. Todos os amigos, todos os amores.....ahhh os amores...”


Esquecidos ficam os pensamentos em nossa cabeça. Esquecido permanece o nome dela dentro do Patuá. O nome da menina mulher com quem construirá sonhos e esperanças. “...aquele beijo...o primeiro beijo meio tímido naquela festa...ou era um show...não me lembro, mas daquele beijo, daqueles lábios finos e gostosos....”

As lembranças aos poucos vão se apagando o sono começa a chegar o final da tarde. Os olhos cheios de lágrimas assim era o dia daquele velho, entre sol e frio, entre memórias e lágrimas, entre lembranças e saudades dos tempos passados.


Elisandro Rodrigues


Jogos de amar (Richard Serraria)

Durante o sono me acordo

Quando deito me levanto

Em sonos que são meus

Em sonhos que são teus

Vista do alto a cidade é um bagulho muito doido

De noite o mundo é escuro

Caminhos, carros,

postes, luzes

O tempo escorre fundo

O tempo é coisa de outro mundo

Compreendo que duvido

O anel que tu me destes não era vidro

O amor que tu me tinhas

Apenas começou

Apenas começou

Durante o sono me acordo

Quando beijo me encanto

Encantos que são meus

E lábios que são teus

Vista do alto a cidade é um bagulho muito doido

De noite cachorros latem no escuro

Carrinhos, posses,

credos, cruzes

O tempo escorre junto

O tempo é coisa de outro mundo

Compreendo o que duvido

Vista do alto a cidade é um bagulho

muito doido, vista no colo a menina tão bonita pequenina, vista no colo a

Cecília ela é a minha filha...

3.8.09

No tempo de um abraço.

Nunca contei histórias antes, eu apenas as vivencio. Na verdade algumas eu conto para meu irmão quando nos vemos uma vez por ano. Meu irmão é um bom ouvinte, mas hoje contarei uma história específica para você. Essa história aconteceu assim:

Quando cheguei perto dele, o seu peito começou a doer. Ele acordou com o coração saltando para fora, uma dor insuportável fazendo-o gritar em silêncio. Ele não entendeu nada do que se passava. Parecia que seu coração estava sendo cortado em pequenos pedaços, parecia que estava sendo ultrapassado por facas. A dor era imensa. Demorou alguns minutos para ele me notar no canto escuro do seu quarto. Ele olhou o relógio do celular, eram 3 horas da manhã.
As pessoas me percebem de diferentes formas, apareço como acho mais apropriado para a ocasião. Para ele apareci na minha forma normal, poucos me vêem assim. Eram 3 horas da manhã do dia 3 de agosto, uma segunda feira. Eu vestia uma calça e camisa preta, em meu peito o Ankh brilhava indicando quem eu era. Ele me olhou, todos me conhecem quando o fim está próximo. Ele tinha 25 anos e 43 dias, nascera no dia 22 de junho de 1984 e iria morrer naquele dia 03 de agosto de 2009. Ele me olhou fixo nos olhos e me disse:

“- Sei quem és. Sei por que estás aqui. Tenho duas perguntas para te fazer antes de ir com você, você me responderia elas?”
Disse a ele que responderia suas perguntas, se me fossem permitidas. A primeira pergunta dele foi “Do que eu morri?”. Quando chega a hora qualquer coisa causa a morte, expliquei a ele, mas a sua foi do coração. Disse que as pontadas que ele recebia não eram apenas fisgadas do nada, mas sim um problema que ele tinha que não foi tratado, sendo assim o que causou a sua morte rápida e com muita dor. Dor de um coração parando de bater aos poucos. A segunda pergunta dele tive que pensar um pouco. O diálogo que se travou foi o seguinte:

“- Você me daria mais um dia de vida?
- Por que eu te daria mais um dia de vida? Sua vida acaba de terminar, exatamente as 3 horas da manhã de um dia 03!
- Gostaria de me despedir das pessoas. Acredito que sentirei saudades de muitas coisas que já se foram e de coisas que ainda não aconteceram.
- Creio que estás certo sobre isso. Mas não posso conceder tal pedido, nunca fiz isso a ninguém, por que faria a você?
- Não sei. Quem sabe você não abre essa única exceção?
- Não posso, não tenho como fazer isso.
- Tens sim, sendo você quem é tem como fazer isso. Pode parecer tolo e acredito que muitos já pediram isso antes, mas gostaria de me despedir de algumas pessoas. Gostaria de viver o meu último dia de vida.
- E o que você faria nesse último dia de vida?
- Celebraria a boniteza da minha vida. E daria o último suspiro com um sorriso no rosto, não com a agonia que estou agora.”

Não sei por que disse sim. Não sei se foi pelo olhar que saia daqueles olhos verdes, um olhar de ternura e verdade. Senti compaixão daquela alma. Disse que sim, disse que iria acompanhá-lo naquele dia todo, pois se visse intenção de ele tentar me enganar o levaria no mesmo instante. Não precisou que fizesse isso. Acompanhei o último dia dele, que foi como ele falou uma celebração da vida. Ele não podia me ver, mas sentia minha presença.
Depois de nossa conversa ele voltou a dormir, colocando o celular para despertar às 7 horas da manhã. Mas antes de adormecer novamente me disse:

“ – Não me resta muito dela, apenas um travesseiro, seu cheiro impregnado nele e a sua ausência nessa cama grande. Mas, mesmo assim, será minha última noite ao seu lado.”

Falando isso adormeceu.
Acordou tomou um banho e saiu para caminhar. Fazia frio, as ruas estavam desertas e o orvalho caia sobre sua cabeça deixando suas roupas molhadas. As pessoas de dentro de suas casas não entendiam o que ele fazia caminhando no frio. As 8:30 ele retornou da caminhada tomou outro banho e logo após um café. Começou a ligar para as pessoas que moravam longe, como sua mãe.

“- Mãe como estás?
- Estou bem meu filho. Está tudo bem com você?
- Está sim mãe, só senti saudade e resolvi te ligar dizendo que te amo.
- Estranho você dizendo isso filho, acho que nunca tinha falado isso para mim.
- Pois é mãe, sempre quis te dizer isso, mas nunca tive coragem.”

Ele ligou para seus irmãos, amigos, e pessoas que não via há muito tempo. Todas as conversas foram rápidas, mas em todas falou do sentimento que tinha por elas. Ás 10 horas da manhã seu amigo com quem dividia a casa acordou. Ele o abraçou e mandou o se preparar pois aquele dia eles iam celebrar a vida. Seu colega não entendeu muito bem, mas como estava de férias achou que ele queria começar a semana aproveitando ao máximo. Ligou para outro amigo e reservou o bar para aquela noite. Disse que iria ter uma grande festa em plena segunda. Depois começou a convidar todos os que estavam pela cidade e que ele conhecia de um jeito ou de outro. Sabia que não iria todo mundo, mas mesmo assim convidou a todos e todas dizendo que era sua despedida e que fora chamado para um trabalho em outro estado. As pessoas sempre gostam de ir a despedidas. Passou o dia todo ligando, mandando e-mails e mensagens todos e todas deveriam estar a partir das 21 horas no Bar Disco Voador. Convidou e disse que ia pagar a festa para todo mundo. Chamou quatro bandas próximas dele: Boraimbolá, Pé de Vento, Extramuros e Circ.

Às 20 horas ele estava no bar esperando as pessoas chegarem. Lá ele falou a seguinte frase para seu amigo com quem dividia a casa:

“- Sabe, deixamos muitos pedaços de nós nos outros”.

Aquela frase ecoou dentro de mim. Muitas das frases dele ficaram em minha memória, deve ser por isso que estou contando isso a você. Às 21 horas começou a chegar seus amigos e conhecidos. Veio muita gente para a festa, todos querendo saber como e por que ele iria se mudar. Para todos contava a história que iria para outro estado, um estado muito longe, fora chamado para aplicar e desenvolver uma política de educação. A todos e todas ele abraçava e dava atenção dizendo palavras carinhosas e afetuosas. Algumas pessoas não entendiam muito o porquê, até o questionavam, mas ele apenas dizia que iria sentir saudades dela. Pessoas que ele conhecia a muito tempo, recentemente, antigos amores, antigas paixões, antigos casos amorosos, pessoas de quem não gostava, para todos ele dava atenção, carinho e afeto.
Percebi que tinha uma pessoa que ele procurava com os olhos mais do que outras. Era uma menina de pele branca, cabelos pretos, olhos de um tom meio esverdeado. Ele falara pouco com ela durante a noite, mas a buscava a todo o instante com os olhos. Todos se divertiam na festa. Ele dançou com todos e todas, brincou, abraçou e quando mais próximo estava das 3 horas da manhã do dia 4 de agosto de 2009 completando suas últimas 24 horas de vida, fechando seu ciclo de vida em 25 anos e 44 dias mais feliz ele ficava. Sua felicidade irradiava e contagiava a todos os presentes.
Quando faltavam três minutos para as três horas ele se aproximou daquela menina de quem ele não tirava os olhos a abraçou forte e disse em seu ouvido:

“-Eu te amo. Nosso tempo foi curto. Mas tenho certeza de que morrerei te amando, pois só enquanto eu respirar irei te amar.”

Ela tentou falar alguma coisa, mas sua voz foi apagada por um longo beijo, e seu último minuto de vida, seu último suspiro de vida, seu último abraço foi dela. Ele perdeu-se no tempo em um abraço.

Às 3 horas em ponto eu o toquei no ombro e ele veio comigo sem mais palavras apenas com um sorriso no rosto. Eu o abracei e o levei comigo para o lugar onde ele iria passar o resto da eternidade. Ninguém sabe onde vai passar, ninguém sabe para onde vai mas para você eu irei contar.

- Por que justo para mim?

- Pois desde aquele dia se passaram 60 anos. E naquele último abraço que ele deu naquela menina ele o abraçou também. Pedro essa é a história do último dia de seu pai.

Lágrimas rolaram pelo rosto envelhecido pelo tempo. Pedro as enxugou e me disse:

- Obrigado por me contar essa história. Minha mãe e alguns amigos dela me contaram várias histórias sobre meu pai, mas essa foi a mais bonita, como ele dizia, de uma boniteza só. Posso te perguntar uma coisa antes de me levares?

- Depois do tempo que passou me ouvindo você pode fazer qualquer pergunta?

- E para onde eu vou após morrer?

- Você irá para junto de seu pai, no mundo do meu irmão, no mundo do sonhar, no Mundo Paralelo.

Pedro olhou-me com os olhos cheio de lágrimas e em um último suspiro me abraçou.


Elisandro Rodrigues






1.8.09

...ou maus ventos!


- Ei menina o que ouve! Você está escorregando da minha mão...não me solta. Lembra-se que você me disse para não te largar nunca. Eu não vou largar, mas você não pode largar também...

- Meu menino me desculpe. Pensei que a companhia de alguém, que ser levada voar e conhecer outras coisas me faria bem, mas na verdade não. Não tenho coragem para seguir adiante. O meu medo é maior do que o meu amor. Minha insegurança me domina. Meu não saber ao certo o que eu quero me deixa presa com os pés no chão e não consigo voar.

O menino no alto das nuvens tenta segurar mais forte a mão dela, que aos poucos vai se soltando da sua.

- Não faça isso! Segure mais forte a minha mão...

- Não posso continuar assim. Se continuar a segurar sua mão irei lhe machucar, preciso soltar e voltar a achar meu caminho sozinha..

- Eu posso lhe ajudar não seja estúpida não faça isso...

- Sinto muito meu menino. Continue a voar por todo o lado carregado pelos bons ventos, pelos sons e pela música do mundo.

Dizendo isso a menina largou a mão dele. No alto das nuvens algumas lagrimas escorreram pelo seu rosto enquanto ele a observava caindo feito uma pena leve muito leve. Quando ela era apenas um pontinho na imensidão do azul do mundo ele colocou seu nariz de palhaço e voou mais alto sumindo na imensidão sentindo-se como se fosse um palhaço de um circo sem futuro e nunca mais se soube do menino com asas pequenas e da menina que ficava em cima da colina.


Elisandro Rodrigues

Não vá pensando que eu sou seu

Não vai pensando que só porque é inverno e eu te deixei entrar que você tem o direito de ficar.
Não desmancha a mala, não fala uma palavra, fecha a porta.
Depois eu penso se você pode ir embora...
Mas agora, me aqueçe.

Ana Paula Rocha*
*Post publicado por no blog da http://annamaiarocha.blogspot.com/, taduziu o que pensava nesse dia.

"Você me tem fácil demais, e não parece capaz de cuidar do que possui. Você sorriu e me propôs que eu te deixasse em paz, me disse vai e eu não fui. Não faça assim, Não faça nada por mim.Não vá pensando que eu sou seu. Não faça assim,Não faça nada por mim.Não vá pensando que eu sou seu./ Você me diz o que fazer, mas não procura entender que eu faço só pra te agradar. Me diz até o que vestir, com quem andar e aonde ir, e não me pede prá voltar. Não faça assim, Não faça nada por mim. Não vá pensando que eu sou seu. Não faça assim, Não faça nada por mim.Não vá pensando que eu sou seu."
(Paula Toller/ Herbert Vianna- Nada por mim)

29.7.09

Bons ventos...


No alto da colina, a menina observava o mundo lá embaixo e se perguntava sobre as dores das pessoas. Todo dia ela subia lá em cima e ficava na sua quietude a sentir. Do alto ela enxergava a tudo e a todos suas emoções e seus sentimentos. Mas não conseguia olhar para ela. O vento batia em seu cabelo esvoaçando-os. Os cheiros e perfumes das flores e das pessoas chegavam até ela carregados pela brisa que a tocava no rosto. Os sons, melodias e músicas chegavam aos montes lá em cima da colina. Não eram sons de carros e máquinas, mas sons de corações, de risos, de felicidade, de crianças correndo na grama. Entre um som e outro um soluço e o barulho de uma lágrima caindo. “Como existem pessoas que caminham sozinhas no mundo” pensava ela do alto da colina. Sentindo-se observada ela olhou para cima e notou um menino com pequenas asas a olhar ela. “Quem és tu?” Perguntou ela ao menino de asas, “Que bons ventos te trazem aqui?”. “Não sei ao certo, estava passando e parei para te olhar, lamentavelmente eu sou assim sabe, me apego aos olhares dos outros” falando isso ele se aproximava da menina dos cabelos bagunçados pelo vento. “Seja o que for você podia me levar para passear? Estou cansada de ficar aqui apenas olhando. Queria sentir mais o vento. Você me leva?”, “Posso te levar sim pois seja o que for, seja o que me surge e que some mas seja o que me consome mais. Estou procurando uma companhia para voar junto comigo, e me cuidar as vezes”, “Por que te cuidar menino das asas pequenas?”, “É que as vezes eu caio e quando eu vou é quando eu acho que onde é que eu tô, me entende?”. Ela olhou para ele e estendeu a mão “Queria acompanhar alguém, andar com alguém do meu lado, mas acredito que voar seja melhor”. Pegando a mão dela os dois partiram levados pela suave melodia dos sons trazidos pelo vento.


Elisandro Rodrigues




Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento