26.8.09

"Se entregar ao caos para extrair nova existência..."




(Achei interessante compartilhar partes de um texto de uma de minhas aulas. Boa leitura, no final link para acessar o texto)

Também utilizarei um outro recurso expressivo para a brevidade da exposição: uma metáfora. A situação de encontro entre dois corpos que irei analisar deve ser a mais prosaica, universalmente experimentada e reconhecida por todos nós: a “paquera” (o flerte - flirt). Para não perder a pompa acadêmica, eu denominarei minhas análises de “teorema da paquera”.
Num primeiro instante, fulminante, temos o chamado “amor à primeira vista”. Os corpos experimentam, neste caso, um estado de paixão “passiva” (logo ficará mais claro o que isso quer dizer) e estamos sob o domínio da imagem do outro, da impressão que ele nos causa, das afecções que ele imprime em nosso corpo. No caso, uma boa, uma ótima impressão. Experimentamos, em termos espinosanos, um afeto aumentativo, um sentimento de aumento de nossas potências ou, dito de outra forma, um aumento de nosso desejo, de nosso apetite, que se nutre da convicção de que aquele outro corpo nos convém. Mas até aí, também em termos espinosanos, estamos no reino do “conhecimento vago”. É claro que os espíritos mais “apaixonados” sempre dirão estarem seguros de terem encontrado seu par perfeito, seu amor eterno, mas sabemos que tais verdades só se confirmarão a posteriori...
Do mesmo modo que Espinosa chama esse “conhecimento vago” (ou imaginativo) de conhecimento de primeiro gênero, podemos chamar as relações sustentadas por tais vínculos de uma relação de primeiro gênero.
Continuando nossa novela amorosa, é possível que, com alguma sorte, aquele encontro que despertou paixões intensamente positivas (ainda que “passivas”) se prolongue. Podemos, por exemplo, marcar um novo encontro, combinar uma saída, quem sabe um jantar a dois, de preferência uma oportunidade qualquer para conversar. Sem querer homogeneizar toda uma diversidade de estilos possíveis de paquera, creio não incorrer em graves reducionismos ao fazer algumas generalizações sobre o conteúdo mais habitual destas primeiras conversas. Os enamorados tendem, em seus primeiros encontros, a explorar o que têm em comum ou o que irei chamar de “zona de comunidade”:
- Você gosta de comida japonesa? Puxa, eu também adoro!
- Não me diga que você gosta dos filmes do Hal Hartley? Incrível! Eu nunca conheci alguém que também gostasse... Só falta você dizer que também gosta de Tarkovski... Não acredito!
- Você também não suporta televisão? Nossa, a gente tem tudo a ver...
Se alguém duvida desta fórmula da paquera, basta imaginar os efeitos de uma situação exatamente inversa, em que não descobríssemos qualquer “zona de comunidade” com aquele que, à primeira vista, despertou nosso interesse. Sairíamos do encontro provavelmente bastante frustrados ou, no mínimo, com uma enorme incerteza a respeito do futuro daquela relação. Paixões violentas não se extinguem diante desta decepção, mas já começam a prometer turbulências.
Na nossa novela, entretanto, a paixão que se acendeu ao primeiro olhar só continuou a crescer mais e mais, na medida em que descobrimos a amplidão de nossa “zona de comunidade”, na medida em que descobrimos que aquele corpo realmente nos convém. Experimentamos esta nova paixão como um aumento ainda maior de nossa alegria, um aumento de nossa potência, de nosso desejo e apetite de vida. Mas, sobretudo, ela vai deixando de ser uma paixão “passiva” e progressivamente vai se tornando uma paixão “ativa”, isto é, descobrimos, pelo conhecimento recíproco, que estamos realmente diante da possibilidade de entrarmos, conjuntamente, na posse dessa potência de vida e experimentarmos afetos de alegria consistente. Saímos deste encontro rindo à toa. Com esse riso gratuito, essa espécie de excesso ontológico que é o riso dos enamorados...
Segundo Espinosa, já adentramos o reino do “conhecimento adequado” ou do conhecimento de segundo gênero, que é o conhecimento das “noções comuns”, o conhecimento daquilo que nos outros corpos nos convém. Esse conhecimento, quando é buscado conjunta e reciprocamente numa relação, abre a possibilidade de uma relação de segundo gênero.
Nesse sentido, conquistar a confiança, por si só, já é um logro. É não apenas a experiência de uma grande alegria, mas uma potência capaz de sustentar as dificuldades maiores de uma relação. Sim, porque há outras conquistas, maiores, a se realizar numa relação...
A “zona de comunidade”, isto é, a descoberta daquilo que nos outros corpos convém ao nosso, é apenas o primeiro patamar de uma relação consistente. Naturalmente, por mais raro que tenha se tornado, este ainda é o patamar mais fácil de alcançarmos e aquele que, talvez, nos dará a força necessária para conhecer o que é mais difícil: aquilo que nos outros é diferente e corresponde a sua “zona de singularidade”. Porque é preciso uma potência ainda maior para se conhecer, nos outros corpos, aquilo que não nos convém.
Esse é, para Espinosa, o conhecimento de terceiro gênero ou conhecimento das “essências singulares”. Relação de terceiro gênero.
Voltando a nossa metáfora amorosa – já abandonando a fase da paquera e partindo para a possibilidade de uma relação duradoura -, sabemos o quanto essas paixões iniciais, mesmo que medianamente “ativas”, isto é, mesmo que já fundadas no (re)conhecimento de uma “zona de comunidade”, por mais ampla que seja, por mais fortes que sejam os afetos de confiança que daí decorrem, não são sempre suficientes para garantir que nós saberemos lidar com as diferenças, com o que no outro eventualmente não nos convém. Por isso, não raramente, quando decidimos encarar a possibilidade de fazer esta relação perdurar, fazemos um “contrato”. E sabemos que os contratos começam onde a confiança termina... Os contratos podem ser vistos como próteses sociais de uma confiança perdida ou que jamais existiu. Ora, isso não quer dizer que quando vamos a um cartório para firmar um casamento não haja mais confiança recíproca. Pelo contrário, isso geralmente acontece quando a confiança está no auge! Mas não creio que seja exagerado dizer que, na prática, só é preciso firmar este contrato porque queremos garantir que certos compromissos serão mantidos e não temos certeza que seremos capazes, até o fim, de aceitar um ao outro, em todas as suas diferenças (que certamente acabarão por se revelar, mais cedo ou mais tarde).
A partir deste ponto, em que eventualmente recorremos a um “contrato”, percebemos, de qualquer modo, que a confiança não é mais suficiente para sustentar as novas aventuras da relação. Sem ela, não teríamos chegado até aqui e ela é a própria potência, a própria força ou o trampolim que nos impulsionará mais adiante. E o que temos adiante? Não mais o que no outro se assemelha a nós. Não mais o que é facilmente reconhecível. Não mais o que no outro é, de certa forma, nossa própria imagem espelhada. Mas o que no outro é irredutível. Sua diferença absoluta. Sua singularidade radical. E é aí que começa o verdadeiro desafio da alteridade. Só aí somos verdadeiramente desafiados a aceitar o outro como um legítimo outro. Nessas novas zonas, passamos a experimentar novas intensidades, às quais fomos conduzidos pelos afetos de confiança, mas que já correspondem a novos afetos aumentativos que anunciam, por sua vez, outros modos de existência, em que nos tornamos a causa última de nossas paixões, em que entramos plenamente na posse de nossa potência. Para Espinosa, a liberdade.
E o que é esse afeto, essa paixão que nos predispõe a aceitar o outro como um legítimo outro, senão o já mencionado acolhimento?
Quando um campo de confiança se constituiu entre os sujeitos, já podemos nos mostrar para o outro com todos os traços de singularização que marcam nosso corpo e nossa alma, sem medo de sermos rotulados como loucos, fracos ou perdedores. Nota-se que há um deslizamento sutil do afeto de confiança para o afeto de acolhimento...
O momento da confiança é aquele “em que as forças de heterogeneização estão por cima, o que engendra um novo tipo de relação feito de ‘respeito, admiração e confiança’...” Esse “outro tipo de relação’’ é, na verdade, “um outro modo de subjetivação, um outro mundo neste mundo. Amparar o outro na queda: não para evitar que caia nem para que finja que a queda não existe ou tente anestesiar seus efeitos, mas sim para que possa se entregar ao caos e dele extrair uma nova existência. Amparar o outro na queda é confiar nessa potência, é desejar que ela se manifeste. Essa confiança fortalece, no outro e em si mesmo, a coragem da entrega” (Rolnik, 1995).

TEIXEIRA, Ricardo - As redes de trabalho afetivo e a contribuição e a contribuição da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. CLIQUE AQUI

Nenhum comentário:

Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento