8.9.08

Um texto que achei no blog www.rodavirtual.blogspot.com, como gosto às vezes de colocar escritos dos outros segue aqui um da autora Marília Passos.

Friday, December 21, 2007
A morte do tempo

Atirou a primeira vez, pra testar a coragem. Arma em punho, suor entre os dedos, acertou o vaso. Tinha provado que conseguiria. Apesar de ter mirado o canto da janela, acertar o vaso já era algo. E desde que entrara no quarto, eram três as coisas que via: o relógio logo à entrada, o vaso do lado da cama e, na cama, um homem.

Da segunda vez, mais seguro e mais tenso, porque afinal já acertara uma vez, ajeitou o silenciador recém-comprado, tinha medo de que falhasse. Segurou mais firme e chegou-se perto, bem perto do homem que dormia, incapaz de acreditar que ele não tinha acordado com o barulho do vaso estilhaçando duas vezes, o tiro seguido do chão.

Estaria morto? Talvez estivesse, mas agora era tarde. Morto ou não morto: e se estivesse, morreria de novo. Trêmulo, entre vivo e indeciso, mas perfeitamente convencido de que tinha de sair dali tendo feito o serviço inteiro, disparou o segundo tiro.

No ombro direito. Calculara mal o peso da arma, a proximidade do homem, pensou que o coração estaria à esquerda. E a arma, que tinha ido quase bem no primeiro disparo, nesse parecia querer fazer piada. Não era hora de piada, e ele se conformou pensando que pelo menos atingira o alvo. Torto, mas o alvo.

Continuaria. Suando ainda, esperava a reação do corpo. Passara já de homem para corpo. Estaria morto? Bobagem. O sangue empapando os lençóis, o suor escorrendo vivo. Vida era algo que não enchia aquela casa, mas tinha mais o que fazer do que ficar divagando.

Porque estava mesmo indo devagar. Maldição, tinha hora. Compromissos. Pois continuasse. Tiro três, conforme o combinado, agora mirasse direito. Tinham-lhe dito: “mão esquerda, não esqueça” e ficou-lhe tão surreal a idéia de ir matar alguém e desferir um tiro na mão esquerda, que quase não percebeu ali a aliança suja. Crime de amor, tinha graça, ele ali metido numa trama de ciúmes. Mas também, que diferença. Mirou: mão esquerda.

Desviou alguns centímetros para o lado, já prevendo o erro havido nos outros tiros, e, disparo feito, finalmente acertara onde queria. A mão estilhaçada por cima do travesseiro, sangue em volta do medo. Pensara que melhoraria com o tempo, mas a ânsia de vomitar só crescia com os ponteiros daquele maldito relógio que só tiquetaqueava. Não ajuda, só marcava. Marcava, matava, diabo de pensamentos.

O anel permanecera intacto. Azar, faltava ainda dois tiros, o combinado eram cinco. E o que até então era dúvida, virou certeza: tinha vindo matar um homem morto. Teria morrido antes de ele chegar, coisa de pouco tempo? teria talvez sido morto por aquele que o contratara? Estava pensando demais, pensando demais.

De repente o medo, estivera com um morto aquele tempo todo. Um morto que preenchia o tempo mais que ele, queria ir embora. Lembrou-se da avó morta, da mãe morta, dos amigos mortos, todos tão mortos quanto ele temia estar, naquele mesmo momento. E se quem tivesse matado o homem estivesse ali ainda, esperando que ele saísse, pra continuar o joguinho, a grandiosa brincadeira? Suor, suor entre os dedos.

Suor a camisa, sangue os lençóis. Temeu por si mesmo, e o silêncio dos tiros recém-atirados fez com que nascesse certeza de que havia alguém vigiando. Das cinco balas que tinha, três tinham ido a um morto, que burrice. Não cumpriria o combinado, afinal o morto já não estava, desde o começo, morto mesmo? Três balas perdidas, e quem perdera era ele.

Agora sabia tudo: o homem que o contratara era um maluco perfeito, e com toda a certeza devia estar naquela sala. Ou na cozinha. Ou na varanda, meu Deus, que casa enorme. E o sorriso com o qual o encarara, quando apertaram as mãos, ele dizendo “confio, confio nos seus serviços. Esteja também confiante quanto aos seus pagamentos”, claríssimo que era armadilha. Sabia, no momento do acerto, que aquele homem tinha plena capacidade de matar quem quer que quisesse, esconder todas as provas, e no outro dia estar sorrindo com um bando de mulheres numa quadra de tênis. Era rico, bonito e particularmente forte, por que contratar um fraco como ele? Por medo de ser preso? Burrice, que burrice, meu Deus...

Pensava nas duas balas restantes. E o pensamento batia nas paredes da casa, correndo com medo imenso, como será que teria morrido o morto na sua frente, aquele que pensara ter matado e agora tinha a certeza de que tinha sido uma grande farsa. O homem devia ter morrido de veneno, ou de asfixia ou de...

As marcas. As marcas no pescoço, claro, tinha sido estrangulado, como não tinha visto isso antes? Não, não estava fantasiando, tudo muito claro, o pescoço marcado, a morte na sua frente e talvez esperando nos lados, nos cantos dos quartos, tinha que correr. Corria.

A penumbra da casa não ajudava a memória a lembrar dos passos há pouco feitos, do caminho inverso, e ele segurava com força a arma pensando que precisaria daquelas balas.

Em última instância, uma era pro louco, a outra seria pra si, se precisasse. Não seria morto, desde pequeno sabia: não seria morto. Matava-se, mas ninguém a tocar-lhe o corpo, ninguém a ver-lhe morrer. Talvez por isso a profissão que escolhera, muito embora devesse dizer que aquele estava sendo seu primeiro trabalho completo. Completo?

Correu com as duas balas na mão, dentro da arma, até alcançar a porta. E quando afinal a mão já ia abrindo o destino da rua, ouviu um barulho às costas. Raciocinou ainda uma vez, iludido com a talvez capacidade de pensar friamente – não pensava. Tendo ouvido o ruído, esteve certo de que ou era o morto que não morrera ou era o assassino. Tão confuso e perdido, que esquecia ser ele o assassino contratado. Mão na maçaneta, um segundo só. E decidido a ninguém tocar-lhe o corpo, deu-se as duas balas de presente, as duas mais ou menos no centro do peito: morrer dignamente. Morreu com o pensamento de ter-se defendido e, no fim, o relógio continuava a marcar os segundos. E continuaria, e ele jamais perceberia que se tinha matado pelo peso dos ponteiros do relógio, naquela hora em que marcavam hora exata.

texto de: marília passos
lido por: ela mesma
na roda de: 08/12/07 (na verdade uma reprise, mas a data da primeira leitura eu não recordo)

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Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento