29.9.08

Um singelo mês...






(imagens blog da Ana - http://www.anaterrailustra.blogspot.com/ e Elma - http://tempodeternuras.blogspot.com/)

28.9.08

Um dedal



O menino chegou em casa. Largou a mochila em cima da cama. Tirou as roupas de dentro dela. Retirou os livros. Algo metálico caiou no chão. O menino pegou o objeto de baixo da cama. Um objeto metálico todo colorido. Não conseguia distinguir o que era. Parecia um baldezinho minúsculo. Tampa de alguma coisa. Não conseguia entender. Olhou para os livros perto de um deles estava um pequeno cartão. Nele estava escrito em letras pequenas e bem desenhadas com caneta vermelha ‘...uma coisa que podemos partilhar sem medo é a fantasia. E essa é a expressão pura dela. Amor é dedal procurando mão...’. Algumas lagrimas rolavam rosto abaixo. Lagrimas singelas. Lagrimas de alegria, de felicidade, de paixão. Pegou o objeto novamente. Um dedal colorido. Um dedal para seus dedos. Para sua mão. Para seu amor. Guardou com carinho o cartãozinho e o dedal. Partilhar a vida. Partilhar os sonhos. Partilhar o ar que se respira. Partilhar as fantasias de crianças correndo no meio de flores. Pulando em poças de água. Terminou de arrumar as roupas e livros. Sentou na sua cama e pensou neste amor que estava construindo, feito brincadeira de criança. Seus lábios se abriam em sorriso só de lembrar das brincadeiras e dos fragmentos que aos poucos os dois iam remendando, costurando, feito concha de retalhos. E assim feliz foi dormir.


Elisandro Rodrigues
setembro de 2008

Fragmentos de um final de semana

Paixão. Um jogo inesquecível. Não por acaso um filme. Suor. Comida. Dormir junto. Dois gatos dormindo juntos. Tortas.Um botão de orquídea se abrindo. Um dedal – Amor é dedal procurando mão. Camarão. Tesão. Carro quebrado. Procura de hotel. Livros emprestados. Aritmética. Beco dos gatos. Calor. Conversas na madrugada. Documentário. Loucura. Beijos. Cerveja. Bolos. Amor.

Elisandro Rodrigues

Setembro de 2008

26.9.08

Texto Inútil - imagens úteis






Dia inútil. Produção zero. Não conseguia compreender o por quê do mundo ser do jeito que é. Das pessoas terem que se matar trabalhando. De não Ter tempo para si mesmo. Tempo para o seu tempo. Pensava isso no final da tarde de Sexta. Em cima de sua mesa vários projetos e documentos a serem encaminhados. Não fizera nada ainda. E o dia estava terminando. Sua mente pairava em outros lugares, em outros mundos. Durante o dia leu diversos blogs, diversas hq´s, tirinhas. Navegava sem rumo na internet. Pulando de página em página. Lendo coisas inúteis e poucas úteis. Se bem que sua compreensão estava além de distinguir a utilidade da não utilidade. Largou o que estava fazendo e saio. Lá fora o sol estava forte, o vento de primavera levantava as folhas de árvores e os papéis do chão. Alguns passarinhos cantavam ali perto. Saio caminhando em direção ao pôr-do-sol. Sentou-se na grama de frente para o rio e ficou lá. Permaneceu lá até a noite chegar. Com a noite o frio aumentou. Mas permaneceu lá sentado. Ainda hoje ele está sentado lá. Não o vemos, mas ele ainda está lá.




Elisandro Rodrigues

Click nelas para visualizar melhor.


Imagem do Flick da Bigatrice http://www.flickr.com/photos/bigatrice/

22.9.08

Fim de inverno

Frio. Mas é o último dia de inverno, a primavera já chega com suas flores e orquídias. Ele a abraça forte, sente seu corpo. Sente o perfume dela. A beija de cima a baixo. Conduz sua mão pelo corpo aquecendo naquela ultima noite de inverno. O cansaço toma conta dos corpos. O suspiro de prazer está acima do cansaço. O suspiro. O abraço. O beijo. O toque. Todos os pequenos movimentos compõem a dança que os corpos vão conduzindo lentamente até chegar ao prazer supremo. Abraçam-se mais forte e assim terminam o inverno e iniciam a primavera.

Elisandro Rodrigues
inicio de primavera

19.9.08

Metamorfoseou


Aos poucos o sol ia se pondo. Aos poucos o dia dava adeus a mais um dia e mais uma noite começava detro de outra noite. Todo o dia termina e recomeça novamente. A vida dela era assim, um dia após o outro, um segundo atrás do outro. Cotidiano tedioso, doloroso. Ela não queria mais aquilo. Não sabia como fugir de dentro da redoma em que vivia. Estava decidida a tempos mudar. Mas não mudava, a acomodação sempre batia a porta quando ela estava prestes a sair. Tinha que ficar, era sua casa, suas coisas, sua vida, seus amores brutos. Ficava, fazia sala para a acomodação, servia café, chá, bolos, seus desejos ficavam dentro da xicará de café. O medo não permitia ousar.
Era sempre assim. Nunca conseguia ir até o final. As loucuras que a acompanhavam logo se cansavam de esperar, acabavam desistindo dela. Como conviver com o desejo da loucura, da desacomodação. Suas asas estavam atrofiadas. Desaprenderá a voar e a caminhar nos céus. O cotidiano a domesticou. Lembrava de quando era criança, das brincadeiras, dos sonhos, das corridas e ds tombos, da liberdade de sentir-se voado. Sempre foi a mesma. Mas aquilo não era ela. Nos seus sonhos ela podia se ver como era de verdade. Tinha asas e voava por todos os lados espalhando perfumes, encantando, brincando com gatos e flores. Brincando com meninos e meninas.
Não se lembra do que aconteceu a seguir. Lembra apenas de acordar em outro lugar, num campo de flores. Estava na frente da porta novamente, quando ia abrir a campainha toca. Ela para, larga a mochila no chão. Olha para o trinco. Dá um passo em direção contrária e sai correndo. Pulou a primeira janela aberta. Metamorfoseou. Não sabia o que tinha acontecido. Percebe suas asas, percebe seu sorriso, percebe seu coração batendo mais forte. Percebe o horizonte a sua frente. Teve vontade de sair correndo ao seu encontro, ou voar devagarinho. Percebe um medo que não tem mais, os medos foram embora, bateram asas e voaram. Ela também bateu asas e foi voar para brincar com um menino que soprava bolinhas de sabão.


Quando ela dorme em minha casa (Zeca Baleiro)
Quando ela dorme em minha casa

O mundo acorda cantando
Quando ela dorme em minha casa

O mundo acorda cantando

Sonhos de lata e de rosas

Gritam no silêncio branco do muro

Com o futuro em suas asas
Ela se vai

Ela se foi

E esses versos são lamentos
Que eu deixo nas calçadas
Canções que inventam pedras sobre a fome

Aí escreverei teu nome
No azul do firmamento
Onde a dalva apareceu

Elisandro Rodrigues
19 de Setembro de 2008
(imagem do CD Transfiguração do Cordel de Fogo Encantado)

16.9.08

Nossas sombras


Caminhavam lado a lado. As duas sombras iam em silêncio. De mãos dadas andavam. De mãos dadas sonhavam. De mãos dadas voavam. Eram apenas duas sombras. Mas podiam viver aquele momento para sempre, assim, em silêncio, andando lado a lado. Assim caminhavam...

15.9.08

Bailarina de arames


Estava cansada. Seu corpo todo doía. Dor de cansaço físico mas também de prazer. Aos poucos de fragmentos em fragmentos ia se reconstruindo. Sua vida andava agitada, uma correria sem tamanho e dimensão. Mal tinha tempo para arrumar suas coisas. Parece que o furacão que era ela mesmo tinha passado sem perceber por sua própria vida. Estava cansada porém feliz.

No computador imagens do final de semana. Fotos de rostos pintados – boneca de pano, palhaços, mendigos – fotos do makin off das gravações que participará. Ao lado de sua cama um buque de flores do campo. Pendurado no teto junto com as girafas voadoras uma bailarina emaranhada de fios, uma bailarina de arames entortados. No pé uma estrela. Parecia que a escultura voava sob os céus. Final de semana perfeito anotava ela em seu diário mental, anotava em suas recordações e lembranças.

Nem precisava anotar muito, ficará gravado em seu corpo todos os prazeres e recordações. Como um mapa sabia cada caminho ao que ele levava. Fazia quinze dias que o conhecia e foram os dias mais felizes e alegres até aquele momento de sua vida. Não sabia onde estes caminhos, este rio que era o menino, a levariam mas rezava a todos os deuses e deusas para que as estradas nunca acabassem, rogava que as águas deste rio continuassem a correr ora devagar, ora com correntezas fortes sempre levando em frente.

Dormiu com um sorriso no rosto, sorriso que ultimamente estampava seu rosto todos os dias.


Elisandro Rodrigues

15 de setembro de 2008.

12.9.08

instruções...

Você pega o ônibus na parada. Procura um lugar para sentar, se estiver cheio fica de pé. Quando passar a rótula com mosaicos, se conta duas paradas. Puxa a cordinha, ou aperta o botão se preferir. Desce na terceira. Uma depois do mercado, na frente dos correios. Atravessa a rua. Desce a primeira a esquerda. Caminha duas quadras. Dobra a esquerda novamente. Estarei te acompanhando minuto a minuto, segundo a segundo. Abre os pulmões me dá um grito, e se prepara, pois descerei com muitos beijos e abraços para lhe dar. Com muito tato, muito cheiro estarei. Depois....é só seguir a grámatica e a geografia do meu corpo.

11.9.08

Outros mundos...

(Imagem de Michel Carlos do blog www.michelcarlos.blogspot.com)

Outros mundos

Coisas estranhas acontecem, já diria Neil Gaiman que vivemos em um mundo estranho. Ele descia com esta idéia na cabeça. A noite estava fria, havia chovido o dia todo, mas aquela hora da noite o céu estava limpo novamente. Ele podia ver algumas estrelas e a lua. A lua estava bonita, crescente – as coisas que começam na lua crescente tendem sempre a crescer até pular para fora dos corpos e do mundo, gritou o menino dentro dele. Menino que às vezes era mago entendedor das bonitezas da vida. Caminhou vagarosamente para casa. Em sua alma e coração a paz e algumas palavras dentro do silêncio – Agora somos um.

O menino gritou novamente dentro dele – olha para cima. Ele olhou e viu o mesmo céu de antes, deu de ombro como quem não entendesse. Guri idiota, besta, olha com o olho dentro do olho – ralhou o menino. Ele olhou abriu mais o olho, deixou o ar entrar dentro dele com mais leveza, fechou os olhos. Quando abriu novamente depois de alguns milissegundos estava em outro lugar, outro mundo. Um mundo com cores, flores por todos os cantos. Em cada parede havia um poema. Em cada passo se escutava uma nova música. O aroma o levava para outros cantos. Cada cheiro trazia uma recordação gostosa. Cada cheiro dela – esse é o nosso cheiro, disse alguém do seu lado. Ele a olhou e viu um gato brincando com borboletas e flores, correndo de um lado para o outro, junto com o gato estava um menino e uma menina. Fora a menina que lhe falava a pouco. O menino parecia ser ele. Sim era ele. Ficou ali olhando aquelas crianças, aquele gato, as borboletas e as flores como se fosse um quadro pintado em movimentos. Fechou os olhos novamente.

Quando os abriu estava na porta de sua casa. Olhou mais uma vez para o céu e percebeu algo voando para longe. Ajeitou a gola da camisa o frio estava aumentando. Sentiu no ar um cheiro diferente. No seu corpo um gosto diferente. Era o gosto deles pensou. Fechou a porta e foi para debaixo das cobertas.


Elisandro Rodrigues

Setembro de 2008(11/09/08)

10.9.08

Brincando de esperar


O dia começou bonito, céu azul e sol. Com o passar da manhã o céu azul se tornou cinza e o sol deu lugar a chuva, ao vento e ao frio. Final da tarde custando a chegar. Ele estava lá no seu lugar de sempre, olhando o relógio do computador de minuto em minuto. As horas demorando a passar. O trabalho rendendo pouco. O pensamento dele estava nela. Num dia assim pensou ele 'Cê me inspira pra eu te respirar'. O final da tarde custa a chegar. O beijo custa a chegar. O abraço demora para fechar. Se faz pressa, mas a pressa não se faz.

O que virá com o final da tarde pensa ele. Sim, ela virá! Não o final da tarde, mas a menina que sopra peixes dentro de bolas de sabão. Que come algodão. Que brinca de se esconder embaixo dos cobertores. É isso que virá, e a pressa não se demorá a chegar. Ele fica a brincar, esperando o fim da tarde chegar. Brinca de soprar vento com palavras. Brinca de escrever no céu e soprar as palavras. Inventa brincadeiras com os pés e com as mãos. Mas a tarde custa a terminar.

Brinca de recordar, e assim recorda os momentos de brincadeira com a menina. Os momentos de se tirar o ar da boca e colocar dentro do outro, partilhando o mesmo ar que se respira. Brinca de visualizar o futuro. Uma noite fazendo casinha de cobertores. Um dia voando juntos. Um outro dia pulando e dançando ao som de dós, fás e sóis. E assim a tarde vai passando aproximando a noite. Aproximando ele do abraço e do beijo. Quando o fim da tarde chega, chega também o gosto e o aroma dela. Ele pega carona no elefante voador e vai concretizar a brincadeira que brincou.

Elisandro Rodrigues

Setembro de 2008 - 09/09/08

9.9.08

Um final de tarde.
Uma rosa.
Um café.
Um beijo embaixo de cada poste e cada rua que passavam.
Uma foto emoldurada por uma janela achada no lixo.
Uma subida em uma rua incleme. Uma perda de folego. Um beijo para recuperar.
Uma caminhada até a faculdade.
Uma brincadeira em cada rua.
Uma conversa em cada esquina.
Uma noite fria.
Um beijo de boa noite.
Um amor que é você.
Uma paixão no ínicio.
Uma viajem para longe.

De um em um com você faço um monte.

Elisandro Rodrigues
09/09/08

8.9.08

O sagrado

Era noite. Estavam sentados na mesa do bar. Na parede quadros de santos,um quadro da primeira ceia divida em vários quadros, imagens de Santos e Santas. Não era de se esperar que o nome do bar fosse Santíssimo. Estava meio vazio. Em cima da mesa via-se uma garrafa de vinho, uma garrafa de água e quatro copos, dois para a água e dois para o vinho. Havia uma vela em cima da mesa, o ambiente todo era agradável e propício o momento em que ambos estavam. Ela levantou-se e foi ao banheiro. Ele ficou pensando nas palavras e no sentido delas.

Estava em um ambiente quase religioso, sagrado, o momento também era sagrado. Momento de partilha, de comunhão, de troca. Ficou recordando o tempo em que estivera no seminário as palavras partilhar e comunhão eram muito utilizadas. Comunhão vinha do Latim: ato de comungar o sacramento da eucaristia. Podia ser uma comunidade de crenças religiosas, uma assembléia de pessoas. Um regime de casamento. Mas na verdade a palavra comunhão remetia a muito mais, remetia a vivenciar algo junto. Partilhar. Partilhar é dividir em partes, repartir. Compartilhar: participar de alguma coisa, ou tomar parte em algo. Todos estes significados estavam nos dicionários pensou ele.

Mas como diz a música “Nem toda palavra é aquilo que o dicionário diz ...”. Compartilhar o ar que respiro quer dizer mais do que está no dicionário. Quer dizer compartilhar o beijo, o abraço, o aperto de mão, o carinho, uma caminhar, uma vida, um sonho. Compartilhar o ar que respiro quer dizer muito mais do que pensamos em fazer é ter algo sagrado. Pensando isso ele se deu por satisfeito. Ela estava voltando do banheiro. Deu um beijo nela, compartilhou o mesmo ar, e lhe disse 'sonho parece verdade quando estou ao seu lado'. Os dois permaneceram ali por mais um bom tempo. Comendo morango com chocolate, tomando vinho e partilhando a vida.

Elisandro Rodrigues
Setembro de 2008.
Um texto que achei no blog www.rodavirtual.blogspot.com, como gosto às vezes de colocar escritos dos outros segue aqui um da autora Marília Passos.

Friday, December 21, 2007
A morte do tempo

Atirou a primeira vez, pra testar a coragem. Arma em punho, suor entre os dedos, acertou o vaso. Tinha provado que conseguiria. Apesar de ter mirado o canto da janela, acertar o vaso já era algo. E desde que entrara no quarto, eram três as coisas que via: o relógio logo à entrada, o vaso do lado da cama e, na cama, um homem.

Da segunda vez, mais seguro e mais tenso, porque afinal já acertara uma vez, ajeitou o silenciador recém-comprado, tinha medo de que falhasse. Segurou mais firme e chegou-se perto, bem perto do homem que dormia, incapaz de acreditar que ele não tinha acordado com o barulho do vaso estilhaçando duas vezes, o tiro seguido do chão.

Estaria morto? Talvez estivesse, mas agora era tarde. Morto ou não morto: e se estivesse, morreria de novo. Trêmulo, entre vivo e indeciso, mas perfeitamente convencido de que tinha de sair dali tendo feito o serviço inteiro, disparou o segundo tiro.

No ombro direito. Calculara mal o peso da arma, a proximidade do homem, pensou que o coração estaria à esquerda. E a arma, que tinha ido quase bem no primeiro disparo, nesse parecia querer fazer piada. Não era hora de piada, e ele se conformou pensando que pelo menos atingira o alvo. Torto, mas o alvo.

Continuaria. Suando ainda, esperava a reação do corpo. Passara já de homem para corpo. Estaria morto? Bobagem. O sangue empapando os lençóis, o suor escorrendo vivo. Vida era algo que não enchia aquela casa, mas tinha mais o que fazer do que ficar divagando.

Porque estava mesmo indo devagar. Maldição, tinha hora. Compromissos. Pois continuasse. Tiro três, conforme o combinado, agora mirasse direito. Tinham-lhe dito: “mão esquerda, não esqueça” e ficou-lhe tão surreal a idéia de ir matar alguém e desferir um tiro na mão esquerda, que quase não percebeu ali a aliança suja. Crime de amor, tinha graça, ele ali metido numa trama de ciúmes. Mas também, que diferença. Mirou: mão esquerda.

Desviou alguns centímetros para o lado, já prevendo o erro havido nos outros tiros, e, disparo feito, finalmente acertara onde queria. A mão estilhaçada por cima do travesseiro, sangue em volta do medo. Pensara que melhoraria com o tempo, mas a ânsia de vomitar só crescia com os ponteiros daquele maldito relógio que só tiquetaqueava. Não ajuda, só marcava. Marcava, matava, diabo de pensamentos.

O anel permanecera intacto. Azar, faltava ainda dois tiros, o combinado eram cinco. E o que até então era dúvida, virou certeza: tinha vindo matar um homem morto. Teria morrido antes de ele chegar, coisa de pouco tempo? teria talvez sido morto por aquele que o contratara? Estava pensando demais, pensando demais.

De repente o medo, estivera com um morto aquele tempo todo. Um morto que preenchia o tempo mais que ele, queria ir embora. Lembrou-se da avó morta, da mãe morta, dos amigos mortos, todos tão mortos quanto ele temia estar, naquele mesmo momento. E se quem tivesse matado o homem estivesse ali ainda, esperando que ele saísse, pra continuar o joguinho, a grandiosa brincadeira? Suor, suor entre os dedos.

Suor a camisa, sangue os lençóis. Temeu por si mesmo, e o silêncio dos tiros recém-atirados fez com que nascesse certeza de que havia alguém vigiando. Das cinco balas que tinha, três tinham ido a um morto, que burrice. Não cumpriria o combinado, afinal o morto já não estava, desde o começo, morto mesmo? Três balas perdidas, e quem perdera era ele.

Agora sabia tudo: o homem que o contratara era um maluco perfeito, e com toda a certeza devia estar naquela sala. Ou na cozinha. Ou na varanda, meu Deus, que casa enorme. E o sorriso com o qual o encarara, quando apertaram as mãos, ele dizendo “confio, confio nos seus serviços. Esteja também confiante quanto aos seus pagamentos”, claríssimo que era armadilha. Sabia, no momento do acerto, que aquele homem tinha plena capacidade de matar quem quer que quisesse, esconder todas as provas, e no outro dia estar sorrindo com um bando de mulheres numa quadra de tênis. Era rico, bonito e particularmente forte, por que contratar um fraco como ele? Por medo de ser preso? Burrice, que burrice, meu Deus...

Pensava nas duas balas restantes. E o pensamento batia nas paredes da casa, correndo com medo imenso, como será que teria morrido o morto na sua frente, aquele que pensara ter matado e agora tinha a certeza de que tinha sido uma grande farsa. O homem devia ter morrido de veneno, ou de asfixia ou de...

As marcas. As marcas no pescoço, claro, tinha sido estrangulado, como não tinha visto isso antes? Não, não estava fantasiando, tudo muito claro, o pescoço marcado, a morte na sua frente e talvez esperando nos lados, nos cantos dos quartos, tinha que correr. Corria.

A penumbra da casa não ajudava a memória a lembrar dos passos há pouco feitos, do caminho inverso, e ele segurava com força a arma pensando que precisaria daquelas balas.

Em última instância, uma era pro louco, a outra seria pra si, se precisasse. Não seria morto, desde pequeno sabia: não seria morto. Matava-se, mas ninguém a tocar-lhe o corpo, ninguém a ver-lhe morrer. Talvez por isso a profissão que escolhera, muito embora devesse dizer que aquele estava sendo seu primeiro trabalho completo. Completo?

Correu com as duas balas na mão, dentro da arma, até alcançar a porta. E quando afinal a mão já ia abrindo o destino da rua, ouviu um barulho às costas. Raciocinou ainda uma vez, iludido com a talvez capacidade de pensar friamente – não pensava. Tendo ouvido o ruído, esteve certo de que ou era o morto que não morrera ou era o assassino. Tão confuso e perdido, que esquecia ser ele o assassino contratado. Mão na maçaneta, um segundo só. E decidido a ninguém tocar-lhe o corpo, deu-se as duas balas de presente, as duas mais ou menos no centro do peito: morrer dignamente. Morreu com o pensamento de ter-se defendido e, no fim, o relógio continuava a marcar os segundos. E continuaria, e ele jamais perceberia que se tinha matado pelo peso dos ponteiros do relógio, naquela hora em que marcavam hora exata.

texto de: marília passos
lido por: ela mesma
na roda de: 08/12/07 (na verdade uma reprise, mas a data da primeira leitura eu não recordo)

2.9.08

Toda noite esqueço

e todo o dia esqueço a noite


Toda noite lembro o que aconteceu no dia. Todo dia lembro o que aconteceu na noite. Como uma roda viva a rotina vai girando os segundos das segundas-feiras, terças-feiras, quartas-feiras, quintas-feiras, sextas-feiras. Durante a semana temos que sempre responder frases que terminam com um ponto de interrogação. Por que você não terminou isso ainda? Por que está cara de bunda mole? O que que deu com ocê, dormiu com a bunda destapada? Quando você vai vir me visitar meu filho? O que a gente vai almoçar hoje? O que se acha disso? Por que sempre tem que ter um ponto de interrogação no final?

No final de semana era diferente. Não existiam pontos de interrogação. Não existia nada. Só a solidão de seu quarto. Saia poucas vezes nos finais de semana. Já era um tédio ter que ir todo o dia trabalhar, todo dia se amontoando no ônibus na ida e na volta. Todo dia comendo junto com um monte de pessoas que mais parecem maquinas e não humanos. Todo dia barulho de teclas de computador, de telefone, de conversas que não dizem nada. Final de semana era diferente. Final de semana era paz na sua própria Bagdá, no seu próprio mundo. Era como se não existisse, como se fosse um lugar nenhum.

Se fosse sair gostava de sair na noite. Não para as festas. Saia para caminhar. Caminhar para esquecer. Caminhar para pensar. Ou simplesmente caminhar e sentir o ar noturno. A neblina. Somente as estrelas por o acompanhar, e as vezes alguns bêbados que ficavam caídos pelo caminho. Mas naquele final de semana ele resolverá sair. Resolverá deixar seu reduto para mais uma vez enfileirar-se e aglomerar-se no meio das pessoas. Saíra pela insistência de uns olhos que não conseguia deixar de imaginar e de pensar. Ela o cativará pelo olhar, pelo gesto simples de menina moleca, menina palhaça. Toda noite lembrava dos olhos dela. Todo dia lembrava os olhos dela.

Ela o convidou e ele saio. Deixar sua rotina de final de semana era algo impressionante para ele, não sabia dizer a quanto tempo fora a última vez que resolveu sair de casa num domingo de tarde. Ao pisar fora de casa, viu o sol a pino, em poucos passos sentiu o calor e as roupas grudando no corpo. Chegou no lugar combinado e esperou. Sua vida sempre tinha sido de espera, pensou ele. Sempre chegava cedo em todos os compromisso. Sempre chegava cedo no trabalho. Sempre chegou cedo nas aulas. Sempre chegou cedo quando ia no cinema ou no teatro. Sempre chegará cedo em todos os lugares que ia. Chegou cedo e esperou. Os minutos embaixo daquele sol faziam a espera se tornar mais dolorosa no sagrado domingo dele. Mas resistiu a tentação de pegar o ônibus de volta para casa, ficou e esperou. Esperou 10 minutos. Esperou 30 minutos. Esperou 40 minutos e nada dela aparecer. Sua roupa estava encharcada de suor, seu corpo estava ardendo por causa do sol. As pessoas em sua volta falavam alto, gritavam, cantavam, o pipoqueiro gritava ao seu lado. Ninguém respeitava seu silêncio.

Cansou de esperar e foi embora. De noite deitado pensou por que toda noite lembrava o que acontecia de dia, e por que todo dia se lembrava do que acontecerá na noite. Por que caminhando esquecia, gostaria que fosse ao contrário se caminhando fosse ele esquecido pelas pessoas. Deixou os pensamentos andarem livres por sua mente e esperou mais uma vez o sono chegar. Se perguntando por que no final das frases sempre existem ponto de interrogação.



Elisandro Rodrigues

Final de Agosto – Início de Setembro de 2008.

Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento