8.8.08

DESPERTAR


“Delírio pergunta a Morpheus em determinado momento: ‘Qual é a palavra pra dizer que as coisas não são iguais o tempo todo?Lembra? Sei que tem uma. Tem, né?’ Sonho responde com o nome da palavra. ‘Mudança’ ele diz. Ela também pergunta: ‘Qual é a palavra pro momento exato em que você percebe que esqueceu como era fazer amor com alguém que gostava muito no passado?’ Sonho responde: ‘Não existe’. Delírio diz: ‘Ah, achei que existia’. E, claro, Delírio tem razão. A palavra é ‘Dó’ e representa um atributo que nem sempre cai bem nas duras realidades da vida desperta.” (Mikal Gilmore – No Prefácio do último volume de Sandman – Despertar, de Neil Gaiman)



Ele caminhava ligeiro no meio da multidão, não notava os rostos das pessoas quando passava. Andava como quem não enxerga nada a sua frente. Mas o seu andar era um andar cansado, um andar de quem carrega o peso do mundo nos ombros. Caminhava desanimado. E em sua mente muitas coisas se passavam. De súbito parou e se olhou de cima, não acreditava no que via. Lá embaixo estava seu corpo parado. Estava flutuando sob seu próprio corpo.
Isso durou apenas um segundo. No segundo posterior já estava dentro de si mesmo, dentro de seu próprio corpo. Continuou ali parado, as pessoas esbarrando-se nele. Um estorvo no meio da multidão. Aos poucos foi dando-se conta do mundo ao seu redor, e como um estranho saio do meio das pessoas, sentou-se no banco de uma praça. Afrouxou a gravata. Abriu um pouco a camisa. E chorou. Chorou um choro sem sentido, mas com todo o sentido do mundo. Suas lagrimas caiam e molhavam o chão. Aos poucos criou-se uma poça de lágrimas próximos aos pés dele.
Parou de chorar, tirou os sapatos e começou a brincar com suas lágrimas e a terra úmida, criando e descriando objetos e seres com suas próprias lágrimas. O mundo parou de girar para ele. Começou a ver as pessoas, ver as árvores, o sol, o céu que o cercava. Sentiu o sol aquecer seu corpo. Deixou os sapatos, a gravata e saio caminhando lentamente no meio das pessoas. Parecia que passava desapercebido no meio da multidão que corria de um lado para o outro, como num formigueiro que tinha se desmanchado.
Ia caminhado lentamente sem direção, sem sentido e sem rumo. Mas sabendo onde queria chegar e o que queria alcançar. E assim caminhou sentindo o chão e a terra entre seus dedos, o vento batendo e despenteando seu cabelo, o doce aroma das flores de inicio de primavera, o sol aquecendo todo o corpo...
Acordou de súbito. Não passava de um sonho. Levantou da cama, escolheu a gravata mais bonita calçou os calçados e saio para a rua.


“Entre o Pedestal Noturno e o matinal. Entre a morte vermelha e o desejo radiante, sem um único som de triunfo ou alerta surge o grande sentinela na Ponte de Fogo. Ó alma transitória, que adorna com sonhos teu pensamento, abandona a coroa de louros, remove as cordas da lira: as rodas do tempo estão girando, girando, girando, a corrente vagarosa flui profunda e não se cansa. Os Deuses estão sobre sua ponte, sussurrando mentiras e amor, zombaram de tua passagem pelo rio sombrio, cujas correntezas incansáveis levarão a ti, rei dos sonhos, - Destronado e eternamente inacessível – para onde os reis sonharam outrora embranquecem em lares de frio monumental.” (James Elroy Flecker – 1884/1915)

Elisandro Rodrigues
2008

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Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento