11.8.06

Sobre criar sentimentos

P.S: Mais uma conversa com Ruah e um pouco da história dele. Sobre como as pessoas criam sentimentos e o medo existente em deixar-se cativar...
Sobre os sinos e o mar de Neruda e sobre o cativar da raposa...

Engraçado, Ruah (meu amigo musaranho) sempre vem conversar comigo em noites de lua cheia, não sei se é mais inspiradora estas noites. Hoje foi um desses dias, Ele veio se aproximando e querendo conversar, ficamos jogando papo fora e num desses papos Ruah me contou a seguinte história, sobre a vida dele e um de seus amores.
“Sabe, tive um amor uma vez que foi diferente e estranho. Ela era linda, encantadora, tinha uma magia muito forte que fazia qualquer um ficar de queixo caído quando a via. Mas eu a vi poucas vezes, a conhecia de longe, nem me lembro se chegamos a trocar muitas palavras antes da primeira conversa. Nesta primeira conversa fui logo abrindo meu coração e dizendo o que eu sentia por ela. Ela no seu jeito simples e tenro de ser me disse o seguinte: ‘Como posso querer-te e gostar de você se ainda não criei sentimentos por ti’.
Com esta frase ela me acabou, fiquei pensando em que disser, mas anda vinha a minha cabeça. Este foi o meu amor, gostei dela por muito tempo, mas não consegui achar uma maneira dela criar sentimentos por mim. Mas hoje estava pensando no que ela falou. Criar sentimentos. O que é criar sentimentos?
No livro do Saint Exupéry “O Pequeno Príncipe”, ele tenta explicar o criar sentimentos através do dialogo do Pequeno Príncipe e a Raposa. O menino estava em busca de amigos, mas a raposa disse que isso era um processo, de criar laços, mas que a muito estava esquecida. O dialogo é mais ou menos assim: ‘Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos.
E eu não tenho necessidade de ti.
E tu não tens necessidade de mim.
Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou a sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música.
E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não tem tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me!
Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa.
Mas tu não a deves esquecer.
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas’.”
Ruah parou um pouco e ficou a pensar, depois continuou. “É a raposa estava certa, hoje as pessoas esqueceram o que é o cativar, o que é criar sentimentos, e o processo que se deve ter para isso. Será que hoje estamos dispostos a nos deixar cativar? Eu tive muito medo de deixar-me cativar e não soube cativar as pessoas por muito tempo. Mas quando parei para pensar o por que disso vi que temos medo da ilusão, do engano, do sofrimento que o deixar-se cativar e deixar-se criar sentimentos trazem. Não nós permitimos sentir, não nós deixamos sentir. Esta ai o erro. Como queremos cativar e criar sentimentos se não nós permitimos isso? É complicado...mas também é simples...é só nos permitirmos...”
Dito isso Ruah se retirou e me deixou sozinho contemplando a Lua. Peguei um livro que estava perto de mim, e nele estavam marcados duas paginas, li o que estava escrito e percebi o por que das idéias de Ruah, as vezes palavras, frases, musicas nos fazem lembrar de coisas passadas. As passagens são de um livro do Pablo Neruda “últimos poemas – o Mar e os Sinos”. As passagens dizem isso: “Se cada dia cai dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência.”
O criar sentimentos dever ser isso, sentar-se na beira do poço e pescar luz com paciência. Só assim, quem sabe, perdemos o medo de deixar-nos...de permitir-nos sentir de verdade a profundidade das relações.
Ta ficando tarde, parece que a noite vai chorar, as nuvens começam a tapar a lua e se aprontar para chorar por não se permitir a sentir. Sinto a lua mais uma vez, sinto o vento de noite de chuva, e vou para a cama dormir, recitando mais um poema do Neruda.
“Quero saber se você vem comigo a não andar e não falar, quero saber se ao fim alcançaremos a incomunicação; por fim ir com alguém a ver o ar puro, a luz listrada do mar de cada dia ou um objeto terrestre e não ter nada que tocar, por fim, não introduzir mercadorias como o faziam os colonizadores trocando baralhinhos por silêncio. De acordo, eu te dou o meu com uma condição:não nos compreender.”

Elisandro Rodrigues
Agosto de 2006
Faz um friozinho e cai uma chuva fina, um bom dia para deixar-se criar sentimentos....

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Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento