9.6.08

Fragmentos sobre Humanização na Arte e Cultura.


“No tic, tac do meu coração, marca o compasso do meu grande amor. Na alegria bate muito forte, na tristeza bate fraco por que sente dor...” (Alcir Pires Vermelho e Valfrido Silva- escutada no espetáculo ‘As quatro chaves’ grupo Vento Forte de São Paulo)


Nosso coração bate forte e fraco dependendo da situação a que está exposto, sentido figurado que damos para quando nosso ritmo cardíaco aumenta ou diminui, se a adrenalina acelera ou não os batimentos. Usamos o bater forte ou fraco para as situações emocionais, quando vemos por exemplo a pessoa que gostamos chegar perto da gente, e assim se vai. Uso aqui para dizer que o meu coração bate forte pela arte, mesmo conhecendo muito pouco do fazer artístico, do fazer teatro e do trabalhar com cultura, pelo pouco que sinto meu coração bate forte.
Neste ultimo mês assisti inúmeros espetáculos teatrais, principalmente devido ao Palco Giratório do SESC/RS. Grandes nomes do cenário nacional estiveram pelos palcos: Cacá Carvalho (O homem provisório – direção, poltrona escura – atuação) , Sérgio de Carvalho (Direção O Circulo de Giz Caucasiano), Ilo Krugli (Atuação e direção nas Quatro Chaves), Antunes Filho (Direção Prét-à-Porter), Hugo Rodas (Adubo). Muitos espetáculos magníficos em sua forma e na atuação: Adubo: ou a sutil arte de escoar pelo ralo (Confraria Teatral Adubo/Tucan – Brasília), Cachorro (Teatro Independente – Rio de Janeiro), A Gaivota – alguns rascunhos (Piollin – João Pessoa), Quiprocó (Miotará – Rio de Janeiro). Também diversos espetáculos de grupos aqui do estado: Cia. Stravaganza, Oigalê, Cia. do Giro, Deposito de Teatro.
Todos estes espetáculos e conversas realizadas com os atores e diretores me levou a me questionar sobre algumas coisas: meu processo de atuação e de criação, em pare me colocando em crise enquanto Ser-Ator, mas sobretudo me fez pensar na cultura e na função da cultura. Como diria Alexandre Vargas, do grupo Falos & Stercus, professor meu no CPTA (Centro de Pesquisa Teatral do Ator), questionando sobre o que, ou com que saímos de cada espetáculo, de cada conversa feita, “nos sensibilizamos com um atuação no palco, mas nos sensibilizamos quando saímos para a rua e vemos as pessoas?”.
É muito fácil nos sensibilizar com uma peça ou um show musical, mas não nos sensibilizamos com a vida que levamos, com as relações que estabelecemos ou não estabelecemos. Precisamos redescobrir o cuidado e a humanização, o ser humano que habita em cada um de nós. Paulo Freire já nos falava disso quando dizia:

“Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é o ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante, e o anúncio de sua superação; no fundo, o nosso sonho”[1]


Os nossos sonhos, sonhos de humanização, isso só é possível quando começarmos a lutar contra a sociedade opressora e desumanizante, onde não se tem, e não temos cuidado um com o outro. Não é uma simples ação este processo "Nosso desafio é organizar o procedimento utópico sem sufocar a capacidade utópica (...). Para que meu sonho seja não apenas utopia, eu preciso agir. Se o sonho se aproxima dos sonhadores é porque eles se organizaram, eles agiram com o sonho na mão”.[2] Acreditar que é possível já é meio caminho andado.
Mas antes de colocar os sonhos em prática o processo que devíamos desenvolver é o de resgate do cuidado, pois é do cuidado que nasce o homem novo e a mulher nova.

A categoria “cuidado” se mostrou chave decifradora da essência humana. O ser humano possui transcendência e por isso viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e se contenta apenas com o infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão recebeu dele o espírito. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no universo. Sem o cuidado o humano se faria inumano.[3]

Qual processo iria nos humanizar mais, fazer com que nos cuidássemos mais se quando vamos a um espetáculo nos sensibilizamos, mas fora dele é difícil ficarmos pasmos com a realidade em que vivemos? Não sabemos, e até é interessante não saber a resposta, pois se soubéssemos a resposta ainda assim estaríamos do mesmo jeito que estamos, sem fazer nada. Uma prática humanizadora, acredito eu, inicia-se nas relações que estabelecemos com o mundo e com as pessoas.

Só nós humanos podemos sentar-nos à mesa com o amigo frustrado, colocar-lhe a mão no ombro, tomar com ele um copo de cerveja e trazer-lhe consolação e esperança. Construiu o mundo a partir de laços afetivos. Esses laços tornam as pessoas e as situações preciosas, portadoras de valor. Preocupamo-nos com elas. Tomamos tempo para dedicar-nos a elas. Sentimos responsabilidade pelo laço que cresceu entre nós e os outros. A categoria cuidado recolhe todo esse modo de ser. Mostra como funcionamos enquanto seres humanos, humanos.
Daí se evidencia que o dado originário não é o logos, a razão e as estruturas de compreensão, mas o pathos, o sentimento, a capacidade de simpatia e empatia, a dedicação, o cuidado e a comunhão com o diferente. Tudo começa com o sentimento. É o sentimento que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta, que nos faz desgostar. É o sentimento que nos une às coisas e nos envolve com as pessoas. É o sentimento que produz encantamento face à grandeza dos céus, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido.
[4]

Acredito na sensibilização das pessoas, sensibilização com o mundo, com os outros. É por isso que acredito que a cultura e a arte tem uma função social e política muito importante a cumprir. Não querendo dizer que são as únicas a fazer este papel, não, a escola é importante, a família é importante, todos os mecanismos e as relações com o mundo e organismos são importante no processo de humanização. Percebo que na arte e na cultura esta sensibilização pode ser tocada mais facilmente, mas devemos trabalhar com ela depois, fazer a função social e política é dialogar com os espectadores, com o publico, é discutir, conversar, estabelecer relações afetivas após cada espetáculo, cada trabalho. E também levar a cultura aquelas pessoas que não tem acesso a cultura, aqueles e aquelas que nunca foram a um teatro, a uma casa de espetáculos, que nunca assistiram uma peça, uma encenação. Descentralizar a cultura que fazemos. Freire tem uma frase que sintetiza este parágrafo: O diálogo é o encontro amoroso dos seres humanos, que mediatizados pelo mundo, o pronunciam, isto é, o transformam e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos.
Humanizar e cuidar, estão intrinsecamente, ligados à cultura e as artes. No espetáculo “Quatro Chaves” do grupo Vento Forte, os atores e atrizes pediam para o publico quais eram seus desejos, quais seus sonhos, e o meu foi o de humanizar as relações através da arte. Desejo complexo mas que com o pouquinho que cada um faz pode se tornar realidade. Mas um pouquinho conscientes do trabalho que desenvolvemos para a humanização e o cuidado.
Fico por aqui nestes breves fragmentos sobre a arte, a cultura, a educação e o humanizar.
Elisandro Rodrigues
Teorizando
Junho de 2008

[1] FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 10.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. (pg. 89)
[2] FREIRE, Paulo e NOGUEIRA, Adriano. Que fazer: Teoria e Prática em Educação Popular. 3.ed. Rio de Janeiro: Vozes , 1991. pg. 43-44.
[3] BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do Humano, Compaixão pela Terra. 7.Ed. Rio de Janeiro:Vozes, 2001. p. 4
[4] Ética e Humanidade. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boff/boff_eticahumano.html. Acesso em 24 de outubro de 2006.

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Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento