6.10.09

Dar língua para afetos que pedem passagem.


“Na falta de luz pegue uma vela, lápis, papel e percorre-os”. Foi o que ela disse e foi o que ele fez. A noite havia se pronunciado há tempos, assim como a chuva trazida pelos ventos. Dentro de casa, na penumbra das velas, ele havia permanecido deitado, escutando os sons da chuva e do vento esperando a luz voltar. Mas ela não voltaria tão cedo.

O sono não vinha, ainda era cedo o relógio do celular marcava 19 horas, sem luz o que fazer? Vagueou pelos cômodos da casa silenciosa a procura de algo que o entretece. A bateria do notebook durou apenas uma hora, deixando o filme que assistia pela metade (Os amantes do circulo polar). A bateria do celular estava no fim, ele apenas ligava de tempos em tempos para ver a hora. Caminhou até a porta, abriu-a e deixou o ar da noite chuvosa entrar. Ficou um tempo a observar as formigas que subiam pelo cabo da televisão e da internet.

Nesse momento de distração o sopro dela entrou. Percorre-os. Percorrer a vela, o lápis e o papel. Assim ele ficou: com uma vela acessa a sua frente, um lápis em sua mão e seu pequeno caderno sob a mesa. Não sabia como percorrer. Se ela tivesse dito como fazê-lo.

Meditou sobre a vela, sobre a luz que ilumina e viaja tão rápido, mais rápido que o vento. Lembrou-se de sua infância, das muitas velas que iluminaram a casa onde passará sua adolescência – uma cidade do interior onde a luz elétrica não havia chegado. Deixou a memória aberta as imagens: músicas, filmes, sensações, o rosto dela iluminado por uma vela. Fazia pouco tempo que tinha visto aquela imagem: ela e a vela. Fazia pouco tempo que o lápis percorria páginas e páginas falando sobre a paixão intempestiva de um menino do catagiro e a menina do botão. Para a luz e para o vento isso era apenas milésimos de segundo, mas para ele era muito tempo.

Na mente mil e uma idéias para filmes, documentários, músicas, livros, mas o papel em sua frente continuava branco como a neve. O papel aceita tudo o que se escreve nele, como o corpo aceita o toque com desejos de paixão. Pensando no corpo dela percorreu a folha com o lápis, assim como suas mãos percorreram o corpo dela.

Toque. Rápido. Lento. Carinhoso. Desejoso. Amoroso. Com tesão. Com surpresa. Descobrindo e mapeando. Tecendo e cosendo novidades. A pela macia das coxas. As mãos que acariciavam o corpo como um jardineiro acaricia a terra preparando o jardim de flores amarelas e laranjas. Um jardim de prazer.

Umbigo. Seios. Bunda. Braços. Cabelos. Rosto. Cada toque repassado vagarosamente na folha, construindo uma gramática corporal, uma linguagem entre mãos e corpo, a cartografia corporal deles. Toque. Lábios. Sabor que encanta e canta. Que vicia. A língua que percorre o corpo como as mãos, sentindo o gosto doce do desejo. Se detêm aqui e acolá – nos seios fonte de ternura, amor e paixão – nas mãos que acariciam o corpo alheio. A língua, as mãos traçam caminhos corporais, como o lápis cria linhas por onde passa.

Corpo território sagrado. Papel palavra que se encarna no corpo – corpo encarnado de poesia, de amores, de utopia, emanações do corpo vibrátil, de bonitezas de um jardim colorido, do devir de um novo amanhecer. Amanhecer na cartografia corporal, nos beijos e suspiros de paixão – os olhos cansados que não se fecham - a vela em sua frente dança construindo figuras no papel agora rabiscado e colorido.

A vela chega ao final lentamente e o papel – jardim colorido dos desejos – tessitura/tecitura única: paixão e toque – sabor e vento – flores e suor – beijos e palavras- suspiros e abraços. O papel antes branco agora vive com memórias do menino dos botões e da menina do cataventos.

O lápis adormece ao lado da folha reinventada moldados pela luz fraca da vela que se apaga lentamente dando seus últimos beijos no colorido do jardim dos amantes, dando passagem aos afetos.

P.S: Depois de devorar – ou ter sido devorado, por estas palavras chega em minhas mãos e ao meu corpo um livro – há tempos esquecido na prateleira e ainda não lido completamente – da Suely Rolnik “Cartografia Sentimental”, ao ler me deparo com o conceito de Cartógrafo Antropófago, onde o mesmo da língua para afetos que pedem passagem.

“Como toda cartografia, ela foi se fazendo ao mesmo tempo que certos afetos foram sendo revisitados (ou visitados pela primeira vez) e que um território foi se compondo para eles...” (Do livro)

Elisandro Rodrigues

Um comentário:

Pablita disse...

Comigo é dessa forma: Afetos sempre são afetos.
Mesmo quando não pedem passagem.
Mas vou além de "dar lingua" e dou alma também. Por isso tem dias que sou tão desalmada. haha.

Já leu o que escrevi pras nossas Cecílias?

=*

Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento