Sou um juntador de coisas, construtor de mosaicos ao vento. Junto vozes dentro de mim, que aos poucos me constroem, e com elas me reinvento todo o instante. Fragmentos de vozes, de pensamentos, de escritos, de vivências.
Um dos fragmentos que levo sempre presente, é uma frase que me chamou a atenção no seu MSN, do Deleuze, “um pouco de possível senão eu sufoco”. Me interessei e você me lançou na Nau do Tempo Rei do Peter Pál Pelbart. Estou nessa Nau desde então, nessa Nau da Loucura. Nau da Saúde Mental.
Estou nessa residência por que me ajudaste a colar fragmentos e mosaicos de inacabamentos e silêncios em mim. Colar mosaicos de textos acadêmicos, de leis, da história da loucura. Me empurraste no abismo da loucura dizendo-me para criar asas de desejo e voar com os pássaros e urubus.
Não tive tempo de lhe contar minhas andanças em Novo Hamburgo, as discussões das aulas, os processos de construção política que participei, os amores que surgiram, foram e tornaram a surgir. Sinto falta das conversas de segunda feira tomando o maravilhoso café que fazias. Dedico esses quatro fragmentos a sua memória, a sua vida de boniteza. Estou me construindo de desperdícios por sua causa, pelas inúmeras horas que passamos me ajudando a estudar.
Cont[a]o para você me escutar onde estejas.
Fragmentos de passadas irriquietas [1] Saindo da invisibilidade – um p[c]onto sobre o Carlinhos
Nas andanças de [des]territorialização, meus passos irrequietos, ou a cidade – quem sabe o menino Carlinhos, vieram até mim [eu a ele] para ambos sairmos de nossas invisibilidades e nos construirmos como Ser Mais, como Sujeitos históricos, produzindo e compartilhando nossas subjetividades.
Da inexperiência no trabalho com Saúde Mental, dos desejos de se perder e conhecer a cidade de Novo Hamburgo surgiu o lançar-se para uma cidade por meio de um Acompanhamento Terapêutico (AT). Ou quem sabe do afetar-se pela história do Carlinhos foi o que proporcionou esse encontro e nossas andanças e minhas intervenções. Como nos diz Analice, Károl e Márcio: “É, com efeito, da construção de uma nova cidade _ outras casas, outros bairros _ que se ocupa a experiência do AT, pela constituição de uma rede de relações, amarragens mais ou menos tênues que se fazem na circulação com o acompanhado, ajudando-o a situar-se, a construir um lugar possível para si, como parte dessa rede, partícipe dos seus fluxos de vida. O at desprende-se da cidade em que se reconhece para que uma outra cidade possa ser habitada, uma cidade que, emergindo do encontro entre acompanhante e acompanhado, constrói-se no exato instante em que, juntos, eles a percorrem: observam traços nunca antes vistos, deparam-se com rastros desconhecidos, embrenham-se por ruas desviantes, sentem cheiros e cores novos.”
Meu [des]encontro com Carlinhos começou com a demanda da procura do Pai dele, da inserção e dos riscos dessa procura. Carlinhos, um andante das ruas da cidades – pois não circula apenas por Novo Hamburgo, mas por Campo Bom e outros territórios da cidade – criou existência no lixo. Foi acolhido pelos trabalhadores da Coleta Seletiva, onde teve lugar e uniforme. Como acompanhar um menino que conhecia mais a realidade da cidade do que eu? Como dar existência a essa procura pelo Pai? Como dar visibilidade ao ser criança [adolescente] num mundo de responsabilidades que o torna adulto?
Lembro-me das aulas sobre Infância onde discutíamos o que era infância, a construção social desse conceito, falávamos também sobre o mundo da infância ser todo adulto, não dando vozes para as crianças [e adolescentes], Cirino nos traz essa reflexão quando fala que “Uma infância que requer “especialistas” não é, certamente, uma infância qualquer, mas sim, uma que supostamente necessita de um séquito de “conhecedores para lhe revelar sua verdade”. Assim, a noção de infância na modernidade se articula dentro de uma política de verdades, amparada pela autoridade do saber de seus porta vozes.”1
Tive meus desencontros comigo mesmo. Com meus saberes. Com minhas práticas. Fui levado à procura, a conversa, ao dialogo com outros, e com ele. Nossos AT´s dentro do bairro Canudos primeiramente nos levaram a conhecer os tristes ventos de Novo Hamburgo. As conversas entre uma partida de sinuca, um sacolé, uma sentada na praça, um jogo na internet, e o mundo de Carlinhos ia se apresentando a mim. O não desejo da escola, o desejo de ficar e ajudar a mãe, as responsabilidades com o pão na mesa, os desejos de busca por existir e ser no mundo. Momentos que foram nos conduzindo a sair da invisibilidade e construir história. Construir caminhos vislumbrados com olhos arregalados de curiosidade -dele e ternura -meus de encontro a uma (outra) cidade, que ele não conhecia: passeio no centro, ida ao shopping, ir ao cinema pela primeira vez, registrar os passos irrequietos em vídeo.
Nos rumores de subjetividade de Carlinhos algumas necessidades se apresentaram e o que era um AT se transformou em uma inserção e intervenção familiar. Conversas com a Silvia (mãe dele), com o Luis Carlos (tio) e a Marta (irmã). Dentro de um contexto familiar complicado – mãe usuária da Saúde Mental, que não consegue sustentar o Ser mãe, tio alcoólatra e irmã com a sobrecarga de organizar a família – iniciei os diálogos.
Nesse curto espaço tempo de intervenção, alguns avanços foram conquistados, principalmente por parte da Silvia, na sustentação do Ser mãe. Processo intenso de conversa, de idas e vindas, de não achar ninguém em casa. Mas um processo de bonitezas, de olhares arregalados com o novo e com outros possíveis.
Aprendi nesse AT-intervenção. Principalmente a dar limite e a construir os desejos dialogicamente. Ver que existe uma necessidade de estar na escola, para a construção de conhecimento e a inserção social, que as desterritorializações ensinam caminhos diferentes de se andar e aprender a aprender no dia a dia e nas dificuldades que os atendimentos oferecem.
Creio que as passadas irriquietas de Carlinhos se farão presentes em mim nos próximos campos. E no andar lento e descompassado, ver o mundo que se apresenta pelos abrigos de olhos curiosos, vestidos de sensibilidade e de delicadeza.
Fragmentos de passadas irriquietas [2] Das pontas das linhas que não dão nó
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. (João Guimarães Rosa)
Pontas de linhas soltas. Nós que se desfazem no correr da vida. Flordelicio e Jeferson, duas vidas nos pólos opostos do novelo.
Casos diferentes que me remeteram a situações de alegria e frustração. Alegria por ver a retomada de vida de Flordelicio em menos de dois meses de atendimento e frustração por não conseguir retomar os desejos de vida de Jeferson.
Flordelicio chegou ao Caps Santo Afonso agitado, ansioso, com medo de viver, com vozes constantes na cabeça dizendo para desistir e com muito medo da morte. Sofrimentos causados por um correr da vida triste e dolorido. Flordelicio caminhava nas ruas da cidade de muitos imaginários quando é atingido por um pedaço de espelho, o que o deixa cego de um olho. Após isso, medo. Ansiedade. Sentimento de que a morte seguia sua sombra.
Como trabalhar? Como retomar os desejos de vida? Não sei muito bem como realizamos essa retomada, mas com muita escuta e conversa as coisas foram mudando. Graciela e eu adotamos uma metodologia de escrita de vida, escrita de medos, escrita do cotidiano para que juntos pudéssemos olhar as escritas do mundo e as formas de existir nele. Conversas que pautavam o porquê da ansiosidade, porquê do medo. Diálogos sobre como potenciar o que antes era devir. Aos poucos entre escrita e fala, Flordelicio floresceu. De um homem que não se escrevia no mundo tornou-se um homem que criava com o mundo.
Os medos e a ansiedade deram lugar a projetos de vida – pintar a casa, sair com a família, fazer carteira de motorista, procurar um outro trabalho. Coisas que foram crescendo feito planta, de uma semente lançada em solo que não se conhecia. Em pouco tempo a/o Flor[delicio] nasceu. Alegria para Graciela e para mim. Nas coisas disparatadas em conversas simples a vida que retorna.
Uma vida surge e outra entra em pulsão de morte. Jeferson foi um caso que mexeu muito comigo. Que me fez procurar conversas com a equipe, soluções extremas e um sentimento de que o serviço estruturado do jeito que está não dá conta desses casos. Em menos de dois meses a vida de Jeferson virou do avesso – foi preso pela ex-mulher, a mãe morreu e a companheira atual teve um filho. Como lidar com essas histórias em uma subjetividade que estava rachada e sem ajuda há tempos?
Essa questão deu “manga pra manga” como diria um usuário. Não conseguimos retomar o devir de Jeferson. Aos poucos ele foi definhando, morrendo como planta sem água. As tentativas de conversa, as visitas, os grupos, a articulação da equipe para escutá-lo não foram suficientes. E numa segunda-feira de Dezembro a companheira chega ao Caps chorando pedindo para interná-lo. O que fazer? Sem uma equipe para sustentar uma acolhida dele no Caps o dia todo, sem pessoas para dar a continência necessária ao estar no Caps, ele foi internado. Internado em um hospital geral, mas mesmo assim internado. Isso mexeu comigo. Primeira vez que internava alguém. Sentimento de despotência, de frustração, desinquietou-se meus passos nos dias que passaram.
Jeferson continua em atendimento no Caps, mas não da forma que gostaríamos de encaminhar o Plano Terapêutico dele. Nos dias que se seguem a essa escrita, estaremos pensando em como acolher os usuários em crise, que espaço de convivência faremos, já que não temos esse espaço no Caps. E como o correr da vida de Jeferson trará coragem. Palavras e sentimentos que se descarrilham em meu peito e que me fazem pensar que muito ainda é necessário dentro do que construímos na Reforma.
Pensando em reforma penso no conceito de Saúde Coletiva apresentado na aula da Sandra Fagundes, conceito esse sistematizado por ela que diz: “Saúde Mental Coletiva é um processo construtor de sujeitos sociais, desencadeador de transformações no modos de pensar, sentir e fazer política, ciência e gestão no cotidiano das estruturas de mediação da sociedade, extinguindo as segregações e substituindo certas práticas por outras capazes de contribuir para a criação de projetos de vida”.
Fico refletindo que projetos de vida, que outras práticas estamos construindo. Um fragmento leva ao outro e nas aulas da Rose penso que o meu projeto semente pegou água e sol demais crescendo para essas reflexões acima pontuadas, no projeto penso em “verificar no cotidiano das práticas dos Residentes em Saúde Mental Coletiva (turma 2010-2011) a inserção da educação, e da educação popular, e da construção de conhecimento de vida, de trabalho e de saúde no período de inserção dos mesmo na Residência Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.”
Fragmentos que constroem mosaicos de passos irrequietos pensando a Construção do Ser Educador na Saúde Mental.
Fragmentos de passadas irriquietas [3] As três loucas
“Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão as seis da tarde, que vai lá fora, que aponta o lápis, que vê a uva, etc. Perdoai. Mas eu preciso ser outros.” (Manoel de Barros)
As três loucas. Uma que é livre trancafiada em seus desejos e duas que não saem de casa. Enilza. Rejane. Edi. Edi. Rejane. Enilza.
Enilza chegou ao Caps Santo Afonso vinda do Hospital Espírita. No primeiro acolhimento o pensamento: “essa é uma louca de pedra”. Na segunda conversa “Sou livre, mas não me deixam sair”. Enilza é uma personagem clássica da Saúde Mental, aquela que podemos dizer que é louca, no aspecto romântico e idealista. Uma senhora que não aderiu ao tratamento por muito tempo, com delírios persecutórios, mas com uma organização temporal e espacial invejável. Por conta de uma família que não sustenta o tratamento e diz que ela é Louca, foi internada duas vezes no Espírita, e agora mora em um Lar de Idosos, onde se questiona: “quero ir pra minha casa, aqui não é minha casa. Aqui eles não me deixam sair, mas me dizem que sou livre”. A família não sabe como ficar com ela e sustentar os desejos de passadas pela cidade que ela quer.
Estou acompanhando ela em AT´s pelo bairro, e posteriormente pela cidade. Quando ela chegou, por não estar tomando e se negando a tomar os remédios, estava desorganizada. Agora está melhor, parece que por ter alguém que a cuide, o que não acontecia quando morava sozinha. A família não a quer, e ela quer ser livre. Como deixá-la morando sozinha e se comprometendo com o tratamento? Passos que aos poucos iremos construir, ou queremos construir com Enilza, a Louca, por ver a sensibilidade do mundo pelo corpo.
Rejane é filha de Edi. As duas eram sustentadas pelo pai biológico de Rejane, que não morava com elas, mas sim com sua outra família. Quando esse pai morreu, a família de “'direito” pediu exame de DNA, no exame deu que Rejane não era filha do pai que ela achava que era filha. A família de “direito” não deu mais o dinheiro. Edi surta, Rejane surta. Ambas se trancam em casa e esquecem o mundo lá fora. Como entrar nesse fora é o que nos leva até a casa delas. Sem sucesso, pois ainda não conseguimos entrar. Alguns diálogos por trás do portão fechado com arrame são construídos vez que outra quando o portão da garagem e as portas não são batidas na nossa cara.
Essa é a síntese do caso e o que acontece. Pelo que vimos, nas poucas vezes que conseguimos conversar com a Edi, é que o sofrimento já se psicotizou – com [outros] olhos de loucura, e que a filha está da mesma forma. A Edi não deixa a filha conversar com ninguém, não sabemos como ela está, como está a casa. Sabemos o que os vizinhos contam: gritos nas madrugadas, xingamentos para todos os lados, insultos aos vizinhos, e por ai afora.
Afeto e transferência nesse caso ainda não aconteceu, mas esperamos que com o tempo consigamos entrar e conversar com ambas. Será difícil, mas nossa teimosia é maior.
Fragmentos de passadas irriquietas [4] Quatro Reais
O que mais ocupou meu tempo esse ano com certeza foi os Quatro Reais da Dona Teresinha. Do desejo de existir e de ficar imortalizada pelas mídias digitais, Dona Teresinha viveu três anos falando que queria fazer um filme. Quando chegamos – o grupo de residentes, fomos afetados por esse desejo: Fazer um filme. E nos propomos no inicio do ano a criar essa existência, a cartografar palavras em áudio e vídeo, a escutar as histórias contadas por Dona Teresinha.
Já chegamos ao final do ano e o produto final, os Quatro Reais – nome do documentário, ainda não está pronto. Foram três meses gravando, mais de cinco horas de material. Três meses ‘decoupando’ e roteirizando o documentário. E nos últimos três meses montando e finalizando. Poderíamos chamar de Três, pelos espaços-tempos de produção, mas desde o início ela deu existência a sua história de vida chamando de Quatro Reais.
Por que Quatro Reais? Olha, terão que assistir o documentário quando estiver pronto para descobrir, mas podemos adiantar que diz respeito as cartografias de passadas irrequietas da vida da Dona Teresinha. O que fica? Muitos questionamentos e um não sistematizar a escrita desse documentário. Aladin [um dos nossos tutores] sempre está nos perguntando quando vamos parar para pensar e escrever, pois ele nos diz que isso foi além de um simples documentar a vida de alguém, que mexeu com os desejos e as potências da Dona Teresinha, com outras vidas que passam pelo Caps e com sujeitos que nem conhecemos que já sabem da existência desse audiovisual e decidiram escrever as suas vidas por verem que depois de três anos a Dona Teresinha escreveu os desejos dela.
Temos uma tarefa ainda: mostrar aos outros os movimentos da Dona Terezinha, quem sabe depois que virmos essa produção não nos sensibilize mais e escrevamos esse processo. Essa demanda existe, e um dia terá que sair das nossas cabeças esvoaçantes para os olhos de leitores curiosos com desejos de cartografar ventos.
O apanhador de desperdícios – ou sobre o menino que empinava o vento (quiçá uma breve Introdução do final)
“Tudo o que não invento é falso”. (Manoel de Barros)
Empinar o vento não é uma tarefa fácil. Pensamos que é simples construir uma Pandorga: juntar as varetas, as linhas, o papel, o tecido, a cola – e a Pandorga se mostra. Mas não é bem assim. Temos que apanhar desperdícios para que ela se mostre. Temos que fazer amizade com os objetos inúteis e inanimados para construir o que será a Pandorga. Os materiais são o Devir desse avoador de céus. Não basta apenas construí-la, temos que brincar com o vento, deixar ser afetado por ele, para assim correr pela terra, pelo gramado e deixar que o Vento Invente o percurso por onde a Pandorga irá abrir asas.
Todos pensam que é o menino que empina o vento, mas é o vento que conduz a dança do menino no céu. Na brincadeira de apanhar vento e na boniteza da Pandorga seguimos feito passarinho “invencionando” batidas de asas. Mas o vento também cansa, assim como a Pandorga que dança na imensidão do azul. A tarde chega ao fim e o menino tem que re[a]colher para o chão o que antes voava desterritorializando certezas.
É uma partida que deixa saudades do vento, das nuvens, do desperdiçar tempo, do apanhar cantos. Mas a noite cai e o menino sabe que tem que voltar. Na ida para a casa de pés no chão vai apanhando objetos deixados antes soltos de barriga no chão. Coisas desimportantes para quem não vê a inutilidade presente no que fica que se faz vida também. O menino caçador de inquietudes e delicadezas se assossega na noite brincando de contar estrelas no piscar dos pirilampos.
Os ventos da noite me trazem suas palavras e o seu risso. Nesse adormecer de Sonhos e de fragmentos fica a saudade. Sempre serei grato pela sua escuta e sua amizade. No silenciar do seu abraço me despeço nas palavras de Manoel de Barros “Escrevo para compor meus silêncios – As palavras multiplicam meus silêncios”.
Elisandro Rodrigues
1CIRINO, Oscar. Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica,2001