24.11.08

Sobre Mercadorias e Futuro



Não sabia o que me esperava entrando dentro daquela sala escura. Segurava sua mão apertada junto a minha. Os olhos demoraram um pouco para se adaptar a escuridão e as luzes coloridas que pulavam de lugar. Havia um barulho estranho no ar. Nos sentamos e ali ficamos esperando, eu sempre segurando sua mão. No escuro da sala toque e senti seu rosto, como é lindo pensei comigo e lhe dei um beijo dentro da escuridão. Do nada surgiu ele gritando:

- 'Estou aqui para vender uma coisa
Estou aqui em pé, no som, na luz
Para vender um livro
A terra é quem me deu, eu só plantei...

Conversei com loucos seres que me responderam antes da pergunta:
(mercadorias e futuro)
Estou aqui para vender uma coisa, quem quer comprar?
Pode você não usar, mas tem os seus filhos e os que virão
Os que cairão dos rasgões do céu e do amanhã
(mercadorias e futuro)

"Oh amanhã, o que será o amanhã?"
Eu pergunto embriagado pelo vinho, pela dúvida, pelo medo da escuridão
O medo da escuridão...'


Aquele ser estranho se apresentou como o nome de Lirovsky, tinha consigo uma máquina estranha. Meus olhos não desgrudavam daquele ser vendendo um livro. Um vendedor de livros que inventou uma parafernália de máquinas em forma de carrinho para ajudar em seu ofício. Dessa aparelhagem, dispara sons, imagens e luz, construindo um aparato de recursos tecnológicos contemporâneos. Ele mantinha esses equipamentos ao alcance do corpo, ativando um arsenal de áudios pré-gravados que, junto com os improvisos, se convertem na trilha sonora que nos mantinha presos no que falava.

Lirovsky puxou um violão e um banquinho e continuou:

-'Vitória, vitória
Como é forte a tua luz
E é tão doce o teu sabor na boca, Vitória
Derrota, derrota
Como é forte a tua luz
E é amargo o teu sabor na boca, derrota
Vitória, saiba que eu sou sem você
E a lua que brilha já pode descer, descer
Saiba que eu sou sem você
E aquele que canta já pode morrer, já pode morrer
Já pode morrer'

Eu continuava a segurar sua mão. Sua mão de pele macia, igual aos seus lábios encantadores que emanam beijos de mel. No meio das vozes e das luzes olhava seu rosto compenetrado nas palavras de um profeta vendedor de livros. Através das falas ia contando histórias de Profetas e Profetisas. Suas ultimas palavras antes das luzes se acenderem foram:


-'Lembro sempre da queda das montanhas
Sobre a face da terra
Extremamente assustada com tamanha aproximação
Onde estão as divisões corretas?
Onde estão as sustentações da carga toda?
Atrás do muros que se levantaram na imagem do infinito?
Nos que entenderam tudo com o trágico?
Na incenação do fim,
no fim por ser nada,
e o nada é o que se acaba sempre.
Sendo questões de compromisso etério
Nas frases que se despregam
Sei que já fui um profeta de guerra
E o profeto da guerra hoje cuida do futuro
O profeto da guerra hoje cuida do futuro
No jarro do quintal
É o recurso dos impacientes, vencedor do acaso
Beberei a água do esquecimento um dia
Toda paisagem é muda, e muda
O moinho girando ao seu tormento
O homem que nasce, que cresce, que sobe, que cai
A morte é incerta mas a hora é certa
Um é o todo, e por ele o todo e nele o todo
E se não contém tudo é nada '

'Um é o todo, e por ele o todo e nele o todo, e se não contém tudo é nada', sai com as ultimas palavras na cabeça. Percebi ao sair da sala que ainda estava segurando sua mão. Você sorria e me abraçava e eu retribuía seus beijos. Minha alma profetizava ventos e estrelas olhando nos seus olhos. Na saída os livros a venda. No livro uma frase escrita para nós dois pelo poeta Lirinha Lirovsky 'Para cima e para baixo como um parafuso...'. Poderá ser um profecia? Sai de lá segurando sua mão, com as profecias na alma e você no corpo todo.


Elisandro Rodrigues

(Ontem fui ver o Espetáculo Mercadorias e Futuro de José Paes de Lira, ou Lirinha, do grupo Cordel de Fogo Encantado. Mais sobre o espetáculo, sobre o livro e as músicas pode ser encontrado em www.mercadoriasefuturo.com.br )

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Entra[saí]da - Manoel de Barros

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim:

O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz.

Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem.

[...]

1)É nos loucos que grassam luarais; 2)Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

Siente como Sopla el Viento